13 de abr. de 2011

Milton Santos: Há mesmo um espaço virtual?

Echer

Diante desta pergunta, a primeira reação de um geógrafo será responder que “se é espaço, não pode ser virtual”. Entretanto, como essa expressão hoje se tornou um lugar comum, vale a pena retomá-la e propor uma discussão, ainda que breve.

O vocábulo ‘espaço’ é polissêmico, utilizado na linguagem familiar e popular, assim como na de especialistas de diversas áreas do saber. Fala-se, desembaraçadamente, de espaço sideral para significar o conjunto de sistemas de astros, tanto quanto de espaço social (as relações que caracterizam a vida coletiva e o seu suporte) e de espaço econômico (a trama das relações que permitem ou resultam da respectiva atividade). Da mesma maneira, os psicólogos e psicanalistas freqüentemente se utilizam da expressão para significar os condicionamentos, materiais ou não, da atividade do espírito. Mesmo entre aqueles que se consideram os autênticos especialistas do espaço — tomado aqui como sinônimo de território e suas divisões — tais como os geógrafos, arquitetos, urbanistas e planejadores, a palavra, ainda que única, é representativa de realidades diversas. E os próprios geógrafos distinguem, dentre outros, um espaço físico, dado pela natureza; um espaço humano, marcado pelas culturas; um espaço de fluxos, formado pelos pontos criados pela produção e seu movimento; um espaço banal, que seria o mais verdadeiro e completo, por abranger todos os outros e conter, sem exceção, todo tipo de atores.

Enfim, a atitude é diversa, se quem se exprime apenas utiliza da palavra para designar uma realidade ou um seu atributo, ou se deve, também, enfrentar a difícil tarefa de analisar sua constituição. Para este, consciente do acerto de sua definição ou da precisão do vocabulário adotado, o que dizem as demais disciplinas constitui uma diversão, talvez um ato de lesa majestade, no mínimo uma metáfora. Esta, como se sabe, freqüentemente provém de outras esferas do fazer ou do saber. Nesse particular, a geografia é talvez a maior tomadora e a maior provedora, porque no Planeta cabem todos os objetos e relações que definem as diversas áreas de estudo.

Como o papel da metáfora não é bem o de definir analiticamente uma coisa ou uma relação, ela pode ser tomada apenas como uma acepção ou uma espécie de reforço da expressão que se quer atingir; e o seu uso forte se esgota no próprio domínio do estilo e da produção de imagens. Não sendo um conceito, a metáfora, tomada isoladamente, está longe de fornecer um guia de entendimento e, por não permitir um verdadeiro esforço analítico, sua aplicação também não faz sistema. Pode ser grave erro e fonte de confusão admitir num determinado campo definições já atribuídas em um outro com diferente intencionalidade. O século XX multiplicou os usos da palavra espaço e o mundo da globaliz ação com o qual convivemos também se caracteriza pela profusão das metáforas. Isso se deve, em primeiro lugar, ao fato de ser ele próprio marcado pelo reino da imagem, fenômeno que também se relaciona com a necessidade prática da economia e da política de chamar a atenção para uma coisa ou relação através apenas de um seu aspecto ou parte e não da totalidade da coisa. 

O objetivo é prender o observador, mesmo que superficialmente, acorrentando-o aos desígnios do  propagandista. Daí o papel dos imaginários na produção do mercado, quando o que se mostra, com luxo de exposição, para atrair clientes, é apenas um pedaço, às vezes, uma extremidade do todo. A “verdade” dessa ponta é utilizada para atribuir veracidade também ao resto.

Mas nem sempre há esse tipo de intenção no uso das metáforas e acreditamos ser esse o caso do uso indiscriminado da palavra espaço. Por isso, da mesma maneira que se fala em inteligência artificial, que seria a inteligência das máquinas, também se pode falar em espaço virtual. No primeiro caso, trata-se do  congelamento na máquina de um processo intelectual anterior. Não é esse o conteúdo e a definição de soft, isto é, do programa? Na verdade, o chamado “pensamento” da máquina já é uma repetição, já que é limitado por tal programação.  

Quanto ao espaço virtual, devemos nos lembrar de que a realidade do espaço supõe trabalho, por isso ele não é apenas material ou físico e está sempre ganhando novas definições substantivas com as mudanças históricas. Aliás, o espaço supõe um trabalho que é sempre multidimensional. O espaço virtual em si mesmo não é trabalho, mas pode ser uma sua condição. O espaço virtual apenas permite comunicar o resultado de um trabalho real, multidimensional. Condição imutável do trabalho, portanto unidimensional, apenas autoriza o trabalho, mas não o constitui. Sem dúvida, ele se apóia no espaço real, genuíno, de nossa definição como geógrafo, mas ele próprio não é espaço. Levando a discussão a um extremo, e como os adjetivos não sobrevivem sem os substantivos que modificam, nem mesmo é virtual. Mas não queremos ser extremistas. Não há como recusar a utilização de um vocábulo já antigo para exprimir uma nova situação. Mas é sempre prudente distinguir conceito de metáfora.

O uso da metáfora, da imagem, não pode ser vetado. Será bom, todavia, no mundo que é movido por tantos
enganos e percepções fragmentadas, que isto seja claramente entendido. 

Uma coisa é a importância dessas formas de ser da informação, tão úteis à construção cotidiana da história, cuja aceleração autoriza, como é o caso do espaço virtual. Outra coisa são suas denominações.

Fonte: SANTOS, Milton. Há mesmo um espaço virtual? Disponível na internet in http://www.hypertexto.com.br/publyhpertextopor/. Elaborado em 21/2/2000 e acessado em 10/2/2001.

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