24 de set. de 2009

Entrevista: Rogério Haesbaert

Rogério Haesbaert é geógrafo e professor da Universidade Federal Fluminense. A entrevista abaixo está publicada na Revista Eletrônica dos estudantes de Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina em 17 de abril de 2009.


Entrevista com o Professor Rogério Haesbaert
Universidade Federal Fluminense


EXPRESSÕES GEOGRÁFICAS (EG) – Bom dia, professor!

ROGÉRIO HAESBAERT (RH) – Bom dia!

EG - Como foi sua aproximação com a Geografia?

RH - Uma longa história. Na verdade, pensando bem, eu não consigo explicarde onde vem essa minha ligação e a vontade de trabalhar com a Geografia, porque, sem exagero, desde que me conheço por gente acho que posso me considerar um geógrafo. Lembro que com seis anos de idade pedia cadernos como presente de aniversário para encher de mapas e descrições de países. Era, é claro, uma ligação com toda aquela visão muito tradicional de uma geografia descritiva e de memorização. Mas a associação com a representação cartográfica era constante. Lembro também que com sete ou oito anos ganhei meu primeiro Atlas, aquele antigo Atlas do MEC. Foi uma verdadeira descoberta, pois eu morava bem no interior do Rio Grande do Sul, praticamente na área rural, numa cidadezinha – Mata - que se emancipou quando eu tinha sete anos. Acho que a ligação com a Geografia vem um pouco, também, pela minha família e sua tradição migrante. Meu tataravô Haesbaert foi o primeiro pastor protestante na fundação de Nova Hamburgo, em 1824. Meu pai, descendente de portugueses da Campanha gaúcha, e minha mãe, descendente de alemães da “Serra” ou “Colônia”, encontraram-se justamente numa propriedade rizicultora, onde meu pai trabalhava. É interessante, porque foi justamente a cultura do arroz que levou arrendatários da “Colônia” a penetrar nas várzeas da Campanha e promover este cruzamento econômico e cultural. Havia então esse encontro que sintetiza um pouco o cruzamento de geografias que se desenhava naquela época no Rio Grande do Sul, e que eu vivia muito de perto, entre Serra e Campanha. Com dez anos de idade mudamos de Mata no sopé da Serra Geral e de colonização ítalo-germânica minifundiária, para São Vicente do Sul (então General Vargas), um pouco maior, típica cidade de pecuaristas da Campanha gaúcha. Ali comecei a inventar livros, manuscritos, como um almanaque de todos os países do mundo. Acabaram inventando um concurso sobre Geografia na praça da cidade, durante a semana da pátria, do qual participei e onde faziam perguntas não só professores mas até o padre da localidade. Lembro que ganhei uma coleção de enciclopédias e entrada grátis por dois anos no cineminha da cidade. Depois, com onze anos, mudamos para Santa Maria, uma cidade bem maior. Minha mãe conseguiu convencer meu pai a mudar para podermos continuar estudando, pois meus dois irmãos mais velhos já estavam por entrar na Universidade. Mesmo meu pai estando
desempregado, fomos para lá. Em Santa Maria passei a participar de
programas de rádio sobre Geografia. Havia um programa chamado “Música e
Cultura”, com perguntas sobre Geografia a partir dos livros de Aroldo de Azevedo. O prêmio era um valor para gastar numa loja da cidade. Então este forte vínculo com a Geografia vem desde pequeno, não consigo explicar exatamente onde está a fonte de tudo isso. É claro que não tive dúvida quando fui fazer o vestibular, seria para Geografia, embora tivesse também uma certa atração pela área de jornalismo, porque eu também redigia um jornalzinho mimeografado que circulava na quadra em que morávamos. Durante o curso de graduação, como era um curso no interior e bastante tradicional, eu procurei sair para freqüentar cursos e congressos fora. Como comecei a trabalhar como monitor e funcionário da Caixa Econômica – atendendo o Crédito Educativo, que foi criado naquela época – tinha recursos para viajar. Lembro o quanto foi importante para mim a presença no Congresso de Geografia de 1978 em Fortaleza, depois de viagem de 4 dias. Uma mudança radical na minha forma de pensar a Geografia. A presença de Milton Santos que estava chegando e lançava “Por uma outra Geografia”, foi marcante. Nessas participações externas passei a reconhecer o papel fundamental da AGB na minha formação. Um dos contatos que fiz, com a professora Bertha Becker, no Encontro Estadual de Geógrafos do Rio Grande do Sul, em Caxias do Sul, foi decisivo.Numa conversa, ela me propôs que eu fosse para o Rio de Janeiro para fazer o mestrado, mas eu tinha intenção de fazer o mestrado em São Paulo, onde também já havia participado de um outro evento da AGB. O problema era que o sistema de entrada na pós-graduação da USP, mais fechado, exigia conhecimento prévio do professor orientador. Eu até cheguei a conversar com o Prof. Manuel Seabra, que na época discutia a questão regional numa perspectiva marxista, mas como ele não me conhecia, acabei mesmo indo para o Rio de Janeiro. Na UFRJ, apesar de haver prova de Estatística e Matemática (resquícios da Geografia quantitativa, que ali, como em Rio Claro, fora muito forte), o concurso acabava sendo mais democrático. Acabei passando em primeiro lugar e conseguindo bolsa, fundamental para quem mal começara a trabalhar no magistério (era professor na atual UNIFRA, de Santa Maria). Este contato com a Geografia do Rio de Janeiro foi muito importante. E tinha uma turma muito boa, com colegas que debatiam muito, como o Paulo César Gomes. Fui orientado por Bertha e tive o privilégio de ser também aluno e bolsista de Milton Santos, que me convidou para uma pesquisa na favela da Maré (apresentada depois no encontro da AGB de São Paulo, em 1984). Eu sempre idealizara muito o Rio de Janeiro, pela própria geografia, única, da cidade. Eu costumo dizer que o Rio de Janeiro é uma cidade com uma geografia tão incisiva, tão marcante, que ela acaba estimulando muito o imaginário geográfico de qualquer um. A vivência ali representou para mim um verdadeiro embate cultural, também, pois passava do interior do Rio Grande do Sul, de Santa Maria, direto a uma megalópole culturalmente muito distinta. Lembro que o primeiro ano que passei lá foi muito difícil, e daí provavelmente começa a surgir, para mim, na prática, a questão da “desterritorialização”, já evidente nas tantas mudanças que minha família havia feito. Logo depois comecei a dar aula no secundário, pois só com a bolsa não dava para sobreviver. Fazendo concurso aqui, concurso lá, acabei enfim, no ano em que terminei o mestrado, entrando na Universidade Federal Fluminense, onde estou até hoje. Dei aula na PUC, também, um ano antes, com um grupo muito rico, com Ruy Moreira, Carlos Walter, João Rua - pessoas com um espírito crítico que todos conhecem. A partir daí, com a UFF, acabei me estabilizando, digamos assim, pois houve um período em que eu estava completamente tomado de trabalho, dava aula no colégio da Aeronáutica, na ilha do Governador, numa escola secundária em Jacarepaguá, na PUC, em vários pontos da cidade. Já na UFF fiz o Doutorado, a partir de 1990, viajando todas as semanas para São Paulo, onde fui orientado pelo prof. Heinz Dieter Heidemann. Durante esse período, tive o contato com Jacques Lévy, na França, com quem passei um ano no doutorado-sanduíche. Este foi outro momento que destaco como fundamental na minha formação, o contato com a Geografia francesa e européia no sentido mais amplo, especialmente as linhas inovadoras propostas por geógrafos como Jacques Lévy, na Geografia Política,e Augustin Berque, de quem fui aluno, na Geografia Cultural. E para alem do aprendizado a nível intelectual devo destacar sempre o aspecto da vivência, da experiência no seu sentido humano. É importante enfatizar este elo entre a dimensão intelectual e a “vivida”. Acho que é por isso que sempre valorizei tanto o trabalho de campo. Tanto na minha dissertação de mestrado na Campanha Gaúcha quanto na tese de doutorado, principalmente no oeste da Bahia e no sul do Piauí, para mim foram experiências muito ricas não só em termos acadêmicos, mas nas próprias relações que eu construír nesses percursos. Finalmente, passando já dos anos 90 para 2000, terminada a tese de doutorado em 1995, que acabou resultando no livro “Des-territorialização e Identidade”, prossegui ainda com os gaúchos que me acompanham por quase toda a minha trajetória, que começou na Campanha gaúcha, quando eu já indicava a possibilidade de trabalhar com os migrantes sulistas, que resultou depois no trabalho de doutorado. No final dos anos 90 fui para o Paraguai, trabalhar com os “brasiguaios”, na maioria gaúchos que estão do outro lado da fronteira, e com aqueles, também na maioria gaúchos, que estão no Uruguai. Terminei essa pesquisa no início dos anos 2000 e me encaminhei depois para o Pós-doutorado, do qual resultou o trabalho mais teórico que eu desdobrei até aqui, o livro “O Mito da esterritorialização”, cujo embrião está basicamente no meu trabalho de Doutorado – pois apresentei um trabalho com este mesmo título ainda no congresso da AGB em Curitiba, em 1994. No pós-doutorado veio o contato, fundamental, com a Geografia Inglesa, que vai acabar abrindo uma outra porta muito interessante, especialmente através do contato com Doreen Massey, que até hoje permanece muito forte, tendo resultado na recente tradução do livro “Pelo Espaço”.


EG - Como o senhor vê as novas possibilidades de contribuição
epistemológica de outras ciências (humanas e físicas) para com a
geografia e vice-versa?


RH- Eu acho que estamos vivendo hoje um momento muito rico justamente por ter como uma de suas marcas o diálogo interdisciplinar, essa necessidade, mais do que evidente num mundo tão complexo, de um trabalho, eu diria, mesmo, transdisciplinar. Gostaria de começar destacando, sobretudo, como se desenha o hoje, um pouco, o elo da Geografia com outras áreas do conhecimento. Acho que estamos tendo talvez um momento inédito na história da Geografia que é essa possibilidade de dialogar mais com outras áreas, tanto no sentido de buscarmos mais o diálogo com os outros mas de eles, também, virem dialogar conosco, nos chamar ao debate. É um momento muito importante não só aqui no Brasil, mas também lá fora. A experiência que tive com a Geografia inglesa me mostrou muito este aspecto, uma geografia fortalecida e que tem dialogado de uma maneira muito profunda com outras áreas do conhecimento. Isto é perceptível através de alguns conceitos-chave como território e região, que são os dois conceitos que mais têm cruzado a minha trajetória acadêmica. Efetiva-se aí um diálogo tanto com a Economia, quanto com a Ciência Política e a Antropologia. Acho que estas três grandes áreas, pelo menos, têm dialogado muito com a Geografia através desses conceitos, o que tanto enriquece a nossa abordagem quanto a deles próprios. Não podemos esquecer que o próprio “nascimento”, digamos assim, de um conceito como o de território, deve muito às discussões também no campo da própria Biologia. Não se trata, é claro, de uma simples transposição do “comportamento territorial animal” para o comportamento humano, como tentaram fazer alguns autores mais radicais. Mas também não se trata de ignorar o que a Biologia tem a nos dizer nesta questão. Na própria revisão da bibliografia que fiz num capítulo do meu livro “O mito da desterritorialização” verifiquei, para a minha surpresa, que em hipótese alguma poderíamos falar de um “comportamento territorial padrão” para os animais, e se alguma característica deveria passar de um universo para o outro deveria, então, ser justamente a da multiplicidade de comportamentos, pois entre os animais existem desde territorialidades mais estanques e relativamente fechadas até aquelas completamente imprevisíveis e instáveis. Outra área com a qual dialogamos mais, hoje, neste debate sobre território, é a Ciência Política. Eu mesmo tenho participado de debates promovidos pela Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI). Eles buscam o diálogo conosco, pois as concepções “jurídico-estatais” de território também precisam ser reavaliadas. E para nós é muito importante, também, pois às vezes utilizamos concepções demasiado amplas de território, e o “velho” território estatal acaba por ficar um pouco em segundo plano, e a questão do Estado continua como uma questão muito séria, especialmente agora, na gestão da crise financeira global em que estamos mergulhados. Com relação a outra área, a Antropologia – e, por extensão, com os chamados Estudos Culturais (que abrangem a própria área de Estudos Literários) vivenciei bastante este diálogo interdisciplinar durante minha estada na Open University. Os debates, freqüentes, por exemplo, entre Doreen Massey e Stuart Hall, este grande estudioso da área de Estudos Culturais. Os chamados estudos pós-coloniais, que nasceram principalmente aí, têm hoje uma grande influência na ciências sociais latino-americanas, e uma entrada já visível na geografia brasileira, valorizando os contextos geo-históricos de produção do conhecimento. O entendimento da territorialidade dos chamados “povos tradicionais”, hoje, no Brasil, com inúmeros trabalhos já realizados por geógrafos, é uma mostra deste diálogo, e vem se somar à já tão intensa – e rica – pesquisa na área dos chamados grupos subalternos, que numa leitura mais estritamente marxista fica direcionado para grupos como o dos agricultores sem-terra. Outra vertente de trabalhos interdisciplinares vai além das contribuições epistemológicas e se dá também num universo mais prático, de intervenção e/ou assessoria a movimentos sociais, como os próprios sem-terra, os sem-teto, grupos culturais minoritários, etc. Isto é extremamente relevante e pode estar demonstrando que avançamos, um pouco mais, no sentido de superar velhas dicotomias – não só entre natureza e sociedade mas também entre teoria e prática.


EG - Há tempos que existe um discurso sobre a “primazia da prática” permeado nas discussões epistemológicas da Geografia. Tanto alguns representantes de Geografias Críticas como outros de Geografias Positivistas, comentam sobre a finalidade prática desta ciência. As interpretações de tal discurso são múltiplas. Como o senhor vê hoje a apropriação que se faz deste discurso principalmente nas universidades brasileiras? E como o senhor entende a afirmação sobre a primazia da prática na atividade dos geógrafos?

RH - Sou bastante cético, confesso, com relação a esse excessivo utilitarismo
da Geografia, pois temos que manter um papel eminentemente crítico – mas de
uma crítica eficaz, comprometida com a transformação efetiva, política, e os exemplos que dei no final do comentário anterior seriam uma prova disso: manter o espírito crítico mas sem abrir mão da atuação concreta, política, de intervir, ainda que a nível do discurso, na transformação da sociedade. Isto significa que sou extremamente crítico, também, em relação à separação rígida entre um corpus teórico acadêmico e a dimensão das práticas sociais. E aí, eu diria, sobretudo da prática política, porque eu não vejo prática como uma mera instrumentalização do conhecimento, como muitos “geógrafos tecnicistas” defendem, mas uma aplicação politicamente engajada e a serviço daqueles que realmente estão sofrendo as piores conseqüências dos processos econômicos, políticos e culturais dominantes. Desta forma, este compromisso político da Geografia tem que ser a todo tempo reenfatizado, mostrando que o principal e mais relevante “alinhavo” entre teoria e prática se dá através do reconhecimento das implicações políticas dos nossos discursos. Penso que a nossa formação teórica tem caminhado numa visão mais múltipla das nossas leituras de mundo e isto, por um lado, quando não sobrevaloriza as “diferenças”, o “cada um na sua”, mas promove o debate conseqüente, produtivo, capaz de deixar em aberto o reavaliar de nossas certezas, deve ser visto como muito positivo. O fato de não haver hegemonia clara de uma única grande corrente de pensamento, hoje, como na época de domínio do pensamento estruturalista, não deve ser visto como sinal de fraqueza. De certa forma faz parte do reconhecimento de que, assim como o poder não está simplesmente nas mãos de uma classe bem determinada, a resistência, que é o outro lado, imanente, do poder, também pode brotar de várias fontes e se manifestar de diversas formas. Assim como a tirania do “pensamento único” está em xeque, também o “unicismo tecnicista” entrou em crise, e as saídas no sentido prático também têm múltiplas faces, adaptáveis, inclusive, até mesmo à própria diversidade do meio físico-natural em que estão situadas. Esta é uma grande contribuição explicitada também pelo chamado pensamento pós-colonial (mas não só por ele). No diálogo com companheiros de Departamento da UFF, em especial Carlos Walter Porto-Gonçalves – ademais um grande amigo, temos desdobrado um pouco este debate. Os chamados novos movimentos sociais hoje, especialmente no contexto latino-americano – e a América Latina acabou se tornando um verdadeiro laboratório na gestão de novas experiências sócio-políticas no mundo – revelam toda a riqueza desta superação entre teoria e prática. São movimentos que, ao se envolverem com “nossos” conceitos, como território e territorialidade, os refazem, os reconstroem, moldados pelas experiências concretas de suas lutas políticas. Isto é muito saudável, uma demonstração muito evidente de como refazer a teoria pela prática. Neste sentido, a trajetória acadêmica – e ao mesmo tempo política – de Doreen Massey é um outro ótimo exemplo. Até o seu conceito de “geometrias de poder” (da compressão espaço-tempo) está sendo utilizado, hoje, em algumas propostas do governo venezuelano. É claro que não se trata de um processo simples, ele é eivado de contradições, de idas-e-vindas. Mas o simples fato dessa “experimentação” política existir já é um grande mérito. Não podemos, entretanto, abrir mão de nossa autonomia como intelectuais que, antes de mais nada, pensam, refletem e, por este intermédio, tentam não só interpretar mas também influir para um novo curso das coisas. A propósito, as recentes mudanças político-sociais na América Latina demonstram que está havendo uma abertura – ainda que muitas vezes de forma tênue e ambivalente – para a inserção dos intelectuais (orgânicos?) na construção de novas políticas de gestão. Eu próprio fui convidado, alguns anos atrás, para uma discussão conceitual ligada à nova política do ordenamento territorial do governo, acho até que foi uma iniciativa inédita, de chamar a academia para discutir em Brasília, no Ministério de Integração Nacional. Participaram vários geógrafos, como Bertha Becker, Antônio Carlos Robert Moraes e Wanderlei Messias da Costa. Eu notei ali a preocupação do governo de fazer esse elo com a academia e, para nós, também foi uma oportunidade inédita de tentar colocar em prática aquilo que discutimos, às vezes de uma maneira mais estritamente teórica. Eu acho muito importante esta abertura de caminhos para um elo mais efetivo entre a chamada academia e a ação política. Falo sempre em “política” enquanto dimensão da prática. Não tem muito a ver com a visão tecnicista que critiquei inicialmente, que dissocia nossas práticas de nosso engajamento e de nossa responsabilidade política. E formular conceitos continua fundamental. É lamentável, por exemplo, quando vemos muitos estudantes defendendo apenas disciplinas técnico-instrumentais em reformas de currículo. Fascinados pela parafernália tecnológica ao nosso redor, esquecemos da reflexão crítica e da reformulação teórica sobre a dinâmica das coisas. Isto é profundamente empobrecedor. Por outro lado, no sentido inverso, também não é possível imaginar que se pode desconhecer todo este avanço técnico, especialmente no sentido da representação e interpretação cartográfica. Às vezes por não conhecermos estas novas tecnologias perdemos muito da riqueza que elas proporcionam em termos de reorganização e reapresentação de nossa empiria. Ou seja, deve ser sempre uma via de mão dupla, do contrário não leva a lugar nenhum – nem o teoricismo ou a crítica abstrata, nem o velho empiricismo e/ou tecnicismo que confia de tal forma nos “dados” e/ou na “técnica” que esquece de refletir, de conceituar e, assim, de argumentar criticamente, reformulando constantemente concepções teóricas, formas de pensamento.

EG - Como o senhor vê o futuro das universidades brasileiras e mesmo do ensino básico diante da conjuntura atual? A precarização do trabalho é um fenômeno evidente em marcha diante das estratégias capitalistas para sua auto-reprodução. Como o senhor encara tal processo no tocante a prática dos docentes no Brasil?

RH – Complexa essa questão. Não me considero muito competente para
opinar sobre tema tão vasto como “o futuro das universidades brasileiras”, mas vou dar uma opinião mais rápida, a partir da vivência do meu próprio cotidiano universitário. Passamos por um momento de transição muito sério. O diferencial que caracterizava um ensino público superior de relativa qualidade e um corpo de professores com tempo para pesquisa e dedicação exclusiva, por exemplo, parece que está sendo colocado em xeque. A massificação do ensino, que por um lado poderia ser positiva, ao representar um maior acesso à Universidade por parte daqueles que até aqui pouco usufruíram dela, não pode ser feita às custas da qualidade. De “escolões” nós estamos cheios, principalmente no ensino superior privado, em que os professores são explorados por todo lado, com carga horária excessiva (reproduzindo o que há muito acontece no ensino médio), sem o menor tempo para se qualificar e fazer pesquisa. A quantidade de professores substitutos em muitas universidades públicas, muito mal pagos, sinônimo da precarização do trabalho a que vocês aludem, é reflexo da forma precipitada com que algumas mudanças estão sendo feitas. Outro dilema é o produtivismo – cobrar maior engajamento e produção é saudável, mas contabilizar tudo, transformar tudo em número, quantificar ao invés de qualificar os pesquisadores, os cursos, as pós-graduações. Isto é muito polêmico. Outra questão muito complicada é do elo público-privado e o papel das fundações universitárias nas políticas financeiras e de “autonomia” das Universidades. Muitos centros de pesquisa e laboratórios ficam de tal forma dependentes de recursos privados que seu atrelamento a interesses empresariais faz com que percam o próprio sentido de autonomia da pesquisa universitária. Outro dilema que se coloca para o que vocês estão chamando de “o futuro das universidades brasileiras” é a dissociação entre a Universidade e a sociedade, e neste sentido acho que há pelo menos algumas iniciativas positivas, inclusive na Geografia, que devem ser mais estimuladas, principalmente no que tange à assessoria a grupos “excluídos” ou subalternos, como fazem geógrafos como Bernardo Mançano em relação aos sem-terra, Marcelo de Souza em relação aos sem-teto e vários outros em relação a grupos como indígenas, quilombolas, etc. Sem falar na atuação, crescente, penso, junto a grupos de governos progressistas no que se refere a movimentos como os do orçamento participativo ou do planejamento urbano
renovado em sentido mais amplo.

EG - Em seu livro “Territórios Alternativos” (2006), o senhor propõe interessantes aproximações entre a Geografia e as Artes. Gostaríamos que o senhor comentasse a tríade Arte – Técnica – Geografia. E também como que o senhor vê as proposições poéticas nas pesquisas em Geografia. Estaria a Geografia brasileira contemporânea realmente aberta a essas aproximações?

RH - Vocês tomaram aí um texto específico do livro "Territórios Alternativos" cuja abordagem eu acabei não aprofundando, mas que é um texto de que eu gosto muito. Ele se originou de um encontro que houve na UFF, no início dos anos 90, justamente sobre ciência e arte. Este vínculo é difícil de ser construído, mas é um caminho que alguns geógrafos hoje estão trilhando, estão buscando trilhar, e que para muitos marca um pouco o que será denominado, de forma excessivamente genérica, de pós-modernidade, esse movimento que é também um movimento de maior abertura em relação à dimensão da sensibilidade e da subjetividade humanas, rompendo com o racionalismo e o estruturalismo que imperava antes. Eu lamento não ter desdobrado mais essa perspectiva, talvez até no futuro seja um campo que eu vá desdobrar e aprofundar. Nesse caso o que me despertou para esta temática foi o próprio trabalho do doutorado no oeste da Bahia, quando eu percebi as diversas formas de indignação da população local com a presença “gaúcha”, inclusive pela linguagem poética. Uma das pessoas mais intereressantes que contatei, e com quem acabei fazendo amizade, uma gaúcha, também utilizava a arte, mas para tentar romper esta barreira social entre os dois grupos, nordestinos e sulistas. Ela, mesmo sob a crítica de muitos “gaúchos”, passou a resgatar e a estimular a manifestação da cultura local. Passei a perceber que através da análise das identidades territoriais este elo entre ciência e arte é bastante visível, e mesmo necessário ser abordado. A cultura, a arte, é hoje, e dependendo do contexto, um grande instrumento político. Claro que a arte não deve ser apenas “instrumentalizada” politicamente, ela é antes de tudo o campo da criação, da ousadia, da imaginação, da liberdade, do fundamentalmente novo – mas, como tal, não pode deixar de ser sempre, de alguma forma, também, política. Naquele texto a que vocês se referem eu trabalhei com a música gaúcha e suas várias vertentes ou implicações políticas, desde aquela que não tem nenhum compromisso explícito com a denúncia ou o engajamento político, até aquelas que são claramente um instrumento de denúncia e contestação. No fundo, ela carrega sempre uma grande ambivalência, entre o conservar de uma cultura regional e a ruptura para novas formas, inclusive mais universais, de pensar o regional. Desde aquelas letras, que eu reproduzo no texto, extremamente conservadoras, de um gauchismo mais fechado e defensor do latifúndio, do status quo, até aquelas que se contrapõem radicalmente a essa visão conservadora e que cantam, por exemplo, a reforma agrária, a reconfiguração deste ambiente que é justamente o símbolo maior da identidade gaucha, o latifúndio, a estância pastoril. Se nós estamos aqui no Rio Grande do Sul e nos identificamos com esta terra, eles vão dizer, por que não partilhar esse mesmo espaço que de certa forma foi colocado como nosso símbolo maior? Na própria migração gaúcha pelo Brasil afora, onde se reproduz também essa tremenda desigualdade, é interessante reconhecer estas várias vertentes do regionalismo gaúcho. Ao mesmo tempo em que se engajam na fundação de novos Centros de Tradições Gaúchas e se aliam às antigas elites locais, por exemplo, também fundam células de partidos de esquerda e promovem um “gauchismo” muito mais aberto, capaz inclusive de dialogar e valorizar, também, as culturas locais. Voltando ao elo entre cultura – ou, num sentido mais estrito, arte – e política, devemos destacar novamente que toda cultura é “cultura política”, está de alguma forma imersa em relações de poder. Isto fica muito claro quando nos referimos às identidades. A própria construção e manifestação de uma identidade é sempre uma estratégia que está em jogo, uma estratégia de poder, ela é acionada enquanto uma estratégia para o grupo alcançar algum objetivo. Por exemplo, as manifestações culturais dos chamados povos tradicionais, hoje, no Brasil, eles no fundo recorrem a uma identidade como uma estratégia, não querendo com isso dizer que eles têm simplesmente uma visão que alguns autores chamam de (re)essencializadora da identidade. Outro termo mais adequado seria o de essencialização estratégica, que revela que este relativo fechamento identitário, em alguns momentos, ocorre em função de estratégias políticas, como a conquista definitiva de uma reserva, de suas terras. Trata-se de um momento estratégico para conquistas políticas que serão realizadas, para em um outro momento novamente o grupo se abrir, dialogar, se hibridizar, até, quem sabe, com outras culturas. Em relação ao sulista ou, como ele é conhecido genericamente quando migra, “gaúcho”, aí é um leque muito grande de diferentes posições que se desenham, desde aqueles que se fecham e se segregam, criando até ambientes como “bairros gaúchos” – com uma classe média, uma elite local bastante fechada - até aqueles que, por força até das próprias circunstâncias econômicas, muitas vezes, se relacionam de uma maneira muito mais aberta e culturalmente integrada, reavaliando e recriando sua própria cultura e identidade pela mescla com os valores e a cultura do outro. Porque no fundo qualquer identidade, a própria identidade gaucha nasce do hibridismo, de uma mistura. São elementos indígenas, espanhóis, portugueses/açorianos... que se misturaram em determinado momento da história e que deram origem a esta cultura que nos parece, hoje, aparentemente, tão homogênea, coesa. Mas ela foi construída na sua origem desse amálgama cultural de manifestações múltiplas, o que coloca sempre a possibilidade de você também se (re)hibridizar no contanto com o outro. Então é um viés que a Geografia tem que explorar mais. Hoje há vários caminhos nesse sentido dentro da chamada Geografia Cultural – que eu prefiro chamar de abordagem cultural na Geografia, pois, no fundo, em sentido amplo, e para ser mais justo com a conceituação antropológica de cultura, toda Geografia é Geografia cultural. Neste sentido, não podemos simplificar e trabalhar em Geografia cultural apenas com temas menores ou que simplesmente não encontraram guarida em outras perspectivas, aquilo que alguns, de um modo extremamente crítico, irão pejorativamente chamar de “perfumaria”. É justamente quando não ignoramos a natureza política da cultura e trabalhamos o elo ciência-arte, ou seja, enfatizando aquilo que a criatividade e o imaginário têm a contribuir para um pensamento “científico”, é que superamos esta leitura simplista da cultura em Geografia. Eu acho que este é um dos campos em que a Geografia mais tem avançado no Brasil, e onde tem, no futuro, um de seus mais amplos campos de exploração: Geografia e Literatura, Geografia e Cinema ou, num sentido mais amplo, Geografia e Representação, Geografia e Símbolos, Geografia e Identidade.. Aí é a nossa própria concepção de espaço que se amplia, não ficando restrito à visão funcional-materialista que dominou durante um certo tempo. Reconheço que há um enorme campo a explorar que se centraliza mais no campo do simbólico e das representações. Ainda que eu, como costumo dizer, tenda sempre a manter “um pé no chão”, trabalhando sempre na interseção entre materialidade e idealidade, mundo material e mundo simbólico, pois não consigo definir o espaço geográfico se não no sentido relacional que não só vê a indissociabilidade entre as dimensões material e ideal, como reconhece as relações sociais como sendo constituídas por essa espacialidade, só se efetivando através dela, com ela, dentro dela.

Um comentário:

Rogério Haesbaert disse...

Uma retificação: o livro que Milton Santos lançou logo após seu retorno ao Brasil foi "Por uma Geografia Nova"