12 de dez. de 2009

Clássicos da Geografia: Jean Tricart

Nascido em 1920 em Montmorency, na França. Ensinou na Universidade de Strasbourg na cadeira de Geografia. Seus trabalhos abrangeram os campos da Geomorfologia Dinâmica, Geomorfologia Climática, Geomorfologia Estrutural, Ecogeografia e Geografia Regional. De acordo com Cardoso, “toda sua obra revela o pensamento de geógrafo global, que unia a teoria à prática, sendo um dos primeiros a enfatizar a noção de escalas variadas para análises das paisagens. Jean Tricart preconizou o trabalho de campo complementado por métodos experimentais e de laboratórios. Entre seus cuidados, a ajuda aos paises do terceiro mundo foi a maior preocupação que conduziu o seu trabalho na Europa, África e América do Sul”. Faleceu em 2003.

O texto abaixo é o capítulo 3 de seu livro Lu Epideri11i.v de Ia Tierrc.

Fonte: http://www.uff.br/geographia/ojs/index.php/geographia/article/view/120/117


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A GEOMORFOLOGIA, A EDAFOLOGIA E O ORDENAMENTO DO ESPAÇO RURAL

Jean Tricart


Vimos que a consciência dos danos experimentados pelas terras cultivadas causada pelas grandes torrentes ou pela fusão das neves é uma das origens da Geomorfologia. Desde o período dos fisiocratas, os agrônomos têm-se inclinado sobre esta questão de importância vital para a humanidade. Nas estações experimentais estabeleceram áreas de pesquisa para o estabelecimento das medidas de perdas de solo em função das diferentes culturas e das técnicas agrícolas. Porém a análise de tais condições, ainda que indispensáveis e preciosas, não é suficiente. Permite apreender só um aspecto de uin vasto problema e pode comparar-se ao tubo de ensaio do fisiólogo se comparado com a escala de observações do ecólogo.

A Geomorfologia pode permitir tirar partido dessas pacientes medidas na ordenação da terra, no modelado da paisagem agrícola. O presente capítulo é dedicado a este tema e as ordenações rurais de caráter hidráulico serão apresentadas no capítulo 5.

Os mecanismos da morfogênese agrícola

Certo número de agrônomos utilizam a expressão erosão agrícola para designar esse processo. Etimologicamente, todavia, essa expressão não se pode aplicar senão a uma parte dos traumas que o deslocamento da vegetação natural pelos cultivos inflige à natureza. Com efeito, a erosão tem por corolário fenômenos de transporte e acumulação, cujo conjunto está englobado em termos de morfogênese. Por exemplo, na Alemanha se pode demonstrar com precisão, por meio do pólen ou das descobertas arqueológicas, que camadas de lama que ocupam as planícies inundáveis, cuja espessura alcança às vezes cinco metros, se depositaram durantes crises agrícolas sucessivas primeiramente a partir dos grandes desmontes do neolítico, e depois da Idade Média. Em Londres, demonstramos que os alicerces dos moinhos galoromanos repousavam sobre uma débil camada de material de transbordamentos e estavam soterrados por baixo de mais dois metros de depósitos posteriores.

Os desmontes medievais aceleraram, portanto, a acumulação dessas formações antrópicas. Certamente, uma boa parte do solo arrebatado às parcelas cultivadas é arrastada para longe, até os estuários e o mar. O assoreamento acelerado dos estuários da costa este dos Estados Unidos, sobretudo da baía do Chesapeake, que dificultava a navegação, é a consequência direta dos devastadores métodos de cultivo praticados naquela região há mais de cinquenta anos. Numerosas planícies aluvionais se tomam pantanosas porque o transporte crescente de lama provoca a formação, após as inundações, de levantamentos cada vez mais altos na borda dos leitos menores e que retêm a água das enchentes aprisionadas nas bacias do leito maior onde se estancam. Tal é o caso, sobretudo, de numerosos vales de vinhedos da Gasconha cujo estudo foi confiado ao Centro de Geografia Aplicada. O desenvolvimento do cultivo do milho, que ativa a erosão agrícola, piora a situação e obriga a preparar um programa de saneamento: soterradas no inverno, estas terras férteis dão colheitas medíocres quando deveriam ser o lugar de uma agricultura intensiva, ao amparo da erosão.

É preciso, portanto, ter em conta uma idéia, muito natural entre os geomorfólogos, porém que os agrônomos geralmente esquecem: os danos provocados por uma acentuação antrópica da morfogênese se deixam sentir tanto nas zonas originárias de materiais (erosão das terras cultivadas) como nas de acumulação (coluvionamento ao pé das vertentes ou no fundo de pequenos vales, modificação do modelado das planícies aluvionais, assoreamento dos cursos d"agua e dos estuários, depósito en cones de dejeção). Os dois aspectos estão intrinsecamente vinculados por uma espécie de lei de lavoisier geomorfológica e devem ser tratados conjuntamente em uma ordenação racional das terras. Porém, nesta morfogênese antrópica, o fenômeno motor, o fenômeno original, é a erosão. Os processos de acumulação são desencadeados por ele e revestem a forma habitual na maior parte dos casos, e seus mecanismos diferem só por sua intensidade.

A agricultura e o equilíbrio morfogenético


Os mecanismos da erosão agrícola resultam de uma verdadeira ruptura do equilíbrio natural que afeta a um só tempo a cobertura vegetal e os solos. A cobertura vegetal é substituída por outra cujas propriedades geomorfológicas são muito diferentes. Na França basta evocar a comparação entre o bosque silvestre, cheio de árvores, arbustos e lianas, e o campo de batatas, de beterraba ou de trigo. As plantas cultivadas nunca alcançam a mesma densidade que a vegetação natural, submetida às duras leis da concorrência biológica. Folhas e ramos constituem, aqui, uma tela de proteção menos eficaz contra o bombardeio do solo pelas gotas das chuvas (erosão pluvial). A retenção das tempestades por um bosque alcança de 23 a 30% do total annual das chuvas. Em um campo de cultivo, de 10 a 15% depois do desenvolvimento máximo das plantas. Entre as plantas cultivadas, em certas estações, o campo não está coberto por nenhuma vegetação protetora. As gotas das chuvas golpeiam diretamente a terra. Situação que no âmbito da natureza não se produz senão nas regiões secas, de cobertura vegetal descontínua, praticamente jamais acontecendo em áreas de bosque, nas quais as gotas d'água são detidas pelos ramos das árvores. A energia cinética das gotas das chuvas é considerável. Desprende partículas do solo que são logo arrastadas pelos cursos dos rios. Para convencer-se disso não há mais que observar, depois de uma tempestade, os objetos abandonados na superfície do solo desnudo: sua parte inferior, em muitos centímetros, está toda salpicada de particulas de terra. Pode-se demonstrar, em áreas experimentais, que a intensidade da erosão é inversamente proporcional ao volume da matéria verde dos prados. O solo fica modificado em seu equilíbrio pelo cultivo.

As condições microclimáticas às quais está exposto são totalmente diferentes. Mal coberto por uma vegetação demasiado clara, se aquece e se esfria mais, e se resseca antes. Isto implica importantes modificações ecológicas para toda a sua fauna, de consequências todavia mal conhecidas. A vegetação natural proporciona-lhe uma camada abundante, porosa como uma esponja, que facilita a infiltração da água e o protege contra o efeito cinético, amortecendo as gotas caídas das árvores.

O cultivo que explora as plantas não forma camada protetora no campo. O humus, abundante no solo natural, se rarifica. Ora, é ele quem, modificando a argila, cimenta com ela as partículas de solo em agregados mais resistentes aos choques que as próprias partículas. Graças a estes agregados, o solo é, a um só tempo, poroso, permeável e resistente à erosáo pluvial. Os efeitos das correntezas ficam tão mais limitados quanto melhor os agregados estão formados e mais estáveis sejam. Ocorre que a exportação de matéria vegetal, que é o fim em si dos cultivos agrícolas, compromete a renovação do húmus, principal obstáculo à erosão do solo. A agricultura implica, portanto, em si, intrinsecamente, um risco de degradação dos solos que aumenta a suscetibilidade aos fenômenos morfogenéticos, enxurradas ou deflação eólica. Sucede a mesma coisa com os pastos: a cobertura vegetal se faz mais escassa, compromete-se a estrutura do solo e o pisoteamento da terra pelas patas dos animais facilita o arrastamento pelas águas.

Adaptação empírica das civilizações camponesas

A ação destes dois fatores da erosáo agrícola, modificações na cobertura vegetal e mudança das condições da edafogênese, varia naturalmente segundo os tipos de cultivo e zonas climáticas. Todas as velhas civilizações agrícolas estiveram obrigadas a fazer frente empiricamente ao problema e só puderam subsistir as que o resolveram com um mínimo de eficácia. Por exemplo, a agricultura tradicional africana diminue as modificações do microclima dos solos e os efeitos da erosão pluvial deixando de substituir amplamente o dossel das grandes árvores do bosque com suas rotações. Por outro lado, a mistura de espécies diferentes no mesmo campo de cultivos, permitida pelas condições climáticas excepcionalmente favoráveis, diminue também os riscos de erosão pluvial.

A altemáncia dos cultivos durante dois ou três anos e um retomo ao bosque durante quinze ou vinte permite ao solo reconstituir sua estrutura. Por fim, os trabalhos de cultivo, reduzidos ao mínimo, no geral um simples enterramento da planta, permitem evitar a exposição à intempérie de um solo demasiado esmiuçado, pouco resistente às violentas tempestades tropicais. Todas estas práticas são o fruto de um empirismo que permitiu subsistir, há milênios, povoados de cultivadores que dispõem de poucos meios técnicos e explotam um meio físico geográfico particularmente frágil. Não se pode fazer alterações sem grandes riscos num conjunto coerente e fortemente integrado também a toda uma série de fatos sociais e econômicos que pertencem à geografia humana. Algumas experiências desastrosas podem demonstrar-nos o que foi dito, como os milhões de libras esterlinas perdidas pelos ingleses na África oriental em uma tentativa de produção em massa de amendoim. Outras civilizações tão pouco souberam encontrar tal equilíbrio.

É o caso dos cultivadores chineses de arroz. Antes de colocar no ponto as técnicas do cultivo irrigado, praticaram a exploração das vertentes utilizando as queimadas e os cultivos temporários para plantar o arroz. Provavelmente sob o efeito de uma rotação demasiado rápida das roças, as terras foram se degradando rapidamente e varridas pela erosão. As bases de sua civilização tradicional foram destruídas desse modo. Afortunadamente, isto se produziu quando esse povo havia começado já a praticar o cultivo do arroz inundado nas planícies aluvionais.

O campesinato havia abandonado 2s vertentes, peladas e descamadas, pelas regiões baixas nas quais o limo se acumula. Atualmente, em toda a China do Sul, as colinas são pouco menos que improdutivas enquanto que os homens se amontoam nas áreas dos arrozais inundados. Esta situação é o resultado de uma conversão agrícola total, efetuada no albor da história. Outros povos da Ásia do Sudeste, que não o fizeram, continuam vivendo do cultivo "itinerante" (em amplas clareiras florestais irregulares) do arroz de montanha nas regiões acidentadas. No podem passar de uma débil densidade de população e em relação aos cultivos ficaram muito atrasados com respeito aos demais. Porém nem todos os povos tiveram êxito ao superar tal transtorno de sua civilização agrária. Isto é o que ocorreu, por exemplo, com os maias da América Central. A planta que haviam adotado, o milho, é uma das mais perigosas do ponto de vista da erosão, porque protege mal o solo e o deixa inteiramente desnudado nas primeiras borrascas da estação chuvosa, as mais violentas e perigosas. Por outra parte, o clima das regiões que ocuparam é particularmente agressivo, com chuvas muito intensas.

Atualmente, um proceso erosivo excepcionalmente grande fez estragos nos campos de milho das regiões montanhosas da Guatemala, cunha dessa civilização. Em poucos decênios os solos foram arruinados e o milho, cada vez mais escasso, cede lugar a pastos miseráveis, terrenos baldios que ocultam seu verdadeiro nome. Preferindo por razões sanitárias as regiões montanhosas, os maias gastaram rapidamente as terras que exploraram. Daí toda uma história de migrações impostas pela busca de terras novas, o que provocou o abandono de brilhantes capitais e impediu a formação de um quadro territorial fixo.

Vê-se, por conseguinte, o papel primordial que representaram as tentativas mais ou menos coroadas de êxito de humildes camponeses na criação de condições alimentícias que proporcionaram às civilizações as bases do seu desenvolvimento. Os sistemas assim criados constituem conjuntos dotados de uma forte coesão, tanto do ponto de vista técnico quanto sociais e econômicos que formam o contexto da sua geografia humana. Sua modificação em função de um novo contexto é, pois, delicada. Examinemos alguns aspectos.

Os elementos geomorfológicos da ordenaqão rural nos velhos países agrícolas

O equilíbrio empírico realizado pelas civilizações rurais tradicionais é muito precário. Basta um fato insignificante para rompê-lo, e muitas das crises que as ameaça se produziram no passado. Sua análise pode contribuir poderosamente para esclarecer o presente, porque a racionalidade teórica deixa quase sempre de lado os fatores importantes quando aborda problemas tão complexos. Tal é a razão do interesse que representam os trabalhos do tipo dos de nosso discípulo J. Vogt.

J. Vogt estabeleceu a existência de uma crise de morfogênese agrícola nas regiões situadas entre a bacia de Paris e da Boêmia durante um período que varia, segundo os casos, entre meados do século XVIII e do século XIX. Suas origens são, a um só tempo, um notável progresso demográfico e os primeiros elementos do capitalismo, incitando os grandes proprietários a extrair da terra um proveito crescente. Como os métodos da "revolução agrícola" se encontram todavia ainda em gestação, fatiga-se a terra querendo-se fazer que produza mais.

Efetuam-se rotações até o limite do possível. Nas montanhas pobres onde se pratica o arroteio, as queimadas se produzem a um ritmo cada vez maior e se efetua em ladeiras demasiado enclinadas. Desencadeia-se assim uma violenta erosão que adquire características particularmente catastróficas nos anos de invernos inclementes ou nevados. Massas de terra são assim arrastadas e as rochas vêm à superfície do solo: "as pedras crescem", dizem os camponeses. Nas áreas arenosas dos Vosges, consideráveis massas de areia são arrastadas para o fundo dos vales e cobrem os prados fertéis, inclusive algumas áreas de cultivo situadas aos pés das vertentes. Colmatam-se os tanques protegidos por obras de serralheria. Em resumo, uma verdadeira catástrofe regional abate-se na segunda metade do século XVIII e acaba por desencadear uma emigração em massa, favorecida pelos conflitos de fins de século e pela independência americana.

Este exemplo tem um valor geral. Encontramo-lo em numerosas regiões da África e do Brasil onde o aumento demográfico atual provoca o cultivo, por queimadas, em vertentes que se erosionam, e acumulam massas de areia estéril nas depressões que podiam ser transformadas em arrozais se o progresso técnico houvesse avançado a par com a multiplicação dos homens. Nas mesetas de calcário da Lorena, o mesmo período se traduz por uma rotação de culturas obrigatória antes de sua supressão legal pela'Revolução. Importantes massas de cultivo de uma mesma planta, lavradas ao mesmo tempo, constituem um perigo crescente. De fato, oferecem condições homogêneas à morfogênese. A concentração de certas áreas em grandes parcelas de propriedades burguesas leva ao mesmo resultado. Os efeitos foram mais graves dado que uma criação de gado insuficiente proporcionava esterco em quantidade escassa para conservar a estrutura dos solos, e estes se faziam cada vez mais sensíveis aos efeitos da passagem das águas.

Por último, a necessidade de se obter a todo custo colheitas de primavera aumentou ainda mais o perigo, deixando o solo desnudo no período crítico do degelo. As primeiras plantas de capina, como a batata, mal protetoras do solo, contribuíram também para o desencadeamento da crise. Esta alcançou seu grau máximo às vésperas da Revolução, acentuando as rivalidades sociais. e desempenhou seu papel no desenvolvimento dos acontecimentos políticos. Traduziu-se em graves devastações nas zonas deixadas às intempéries, onde massas de terras se despencaram pelas vertentes, produzindo o descarnamento geral da superfície do solo sob o efeito das enxurradas difusas. Em consequência desta crise, muitas terras foram abandonadas. Tudo termina com o desenvolvimento do cultivo do trevo e da alfafa que melhora os solos e permite beneficiá-los com estercos, a rotação de culturas, e o desenvolvimento do individualismo agrário, que faz alternar as diferentes culturas nas encostas ao azar dos desejos e das possibilidades de cada agricultor.

Em nossos dias, a urgente modernização da agricultura coloca problemas que as crises do século XVIII nos ajudam a compreender. Isto exige um aumento dos rendimentos que implica recorrer de um modo geral aos fertilizantes químicos. Porém, estes não contribuem para a conservação da estrutura do solo e os reguladores químicos, sobretudo os produtos norte-americanos, que têm um preço geralmente proibitivo e eficácia insuficiente. É preciso, portanto, adubar as terras para fazê-las mais resistentes, tanto mais que a erosão, ao arrastar os adubos, provoca perdas importantes para o agricultor, inclusive a curto prazo. Os progressos técnicos permitem facilmente o uso de adubos artificiais. Porém seu emprego requer forçosamente um gasto que muitos orçamentos camponeses podem suportar com dificuldade. Seria vantajoso, por conseguinte, ter em conta os riscos da erosão, como os que resultam conjuntamente das características dos solos e das condições geomorfológicas, para aconselhar sua aplicação. Efetivamente. ali onde as enxurradas correm maior risco de desencadear-se, impõe-se mais recorrer aos estercos orgânicos, independentemente de seu efeito direto sobre os rendimentos. que é tema dos agrônomos.

A modernização de nossa agricultura exige recorrer de um modo crescente à ajuda das máquinas, o que impõe uma nova modelação da gleba. Isso coloca o problema das sebes de proteção. Na França, a lei de 1942 inspirou-se unicamente no espírito da geometria que Pascal opunha tão justamente ao espírito da finura. Toma em consideração o reagrupamento ou concentração das parcelas em superfícies tão grandes quanto seja possível, sem preocupar-se com o meio geográfico no qual se efetua o cultivo. Não exige estudo edafológico prévio, nem considera nenhum dos efeitos que a remodelação possa ter sobre a erosão. No entanto, estes são consideráveis. A destruição dos taludes na Bretanha se traduz em uma ação crescente do vento que frequentemente desencadeia, nas terras leves e de má estrutura, fenômenos de deflação eólea com levantamento de pó. Não quer isto dizer que defendamos a manutenção das sebes de bosques. Muitas são inúteis e interferem no trabalho mecanizado.

Porém antes de descartá-las, não seria demais considerar sua utilidade e não fazer de aprendizes de bruxo. Têm sua razão de ser, inclusive quando, perdendo sua finalidade original, foram excessivamente multiplicadas. Em certos países de campos abertos, criam-se, a grandes custos, cortinas de árvores que são uma grande tela de cobertura adaptadas à agricultura moderna. Se isto se faz simultaneamente na pradaria norte-americana, nas planícies da Hungria, nas estepes da Rússia e da Ucrânia e nas colinas das grandes planícies morânicas da Alemanha democrática, não é por certo o resultado de uma aberração coletiva. Sabe-se que as telas vegetais de proteção permitem às plantas resistir melhor aos ventos abrasadores e favorecem à conservação dos solos.

Apesar das diferenças de clima, uma parte dos resultados pode ser aplicada também na França. Haveria que determinar exatamente, pelas estações agronômicas, em que medida e de que maneira, tendo em conta nossas plantas, nossos solos e nossos climas. Uma vez estabelecidos esses resultados ecológicos, seria conveniente, por meio de estudos de terras, relacionando microclimatologia, edafologia e geomorfologia, determinar que sebes úteis haverá que conservar para o bem geral e mantê-las. Deverão constituir um dos quadros de uma reconstituição racional, numa verdadeira remodelação das glebas. Por exemplo, em uma vertente ao amparo dos ventos dominantes, pode-se certamente suprimir a maior parte das sebes sem resultados nefastos. Em troca, em uma vertente frontal ao vento, que a nada protege, e sobretudo em sua parte superior, é preciso conservar uma quadrícula de malhas mais apertadas. O mesmo ocorre com as zonas de colinas.

A regeneração de terrenos e a erosão

Nas regiões de campos abertos, a regeneração coloca graves problemas geomorfológicos. Conduz, como no século XVIII, a formar grandes parcelas de um só aspecto que se ocupam inteiramente com o mesmo cultivo. Se o solo é plano ou com escassa pendente, deve-se ter em conta suas próprias características, para permitir um apreciável escoamento das água. Isto não representa nenhum perigo. Porém se o relevo é acidentado, as coisas sucedem de outro modo e a erosão se desencadeia tanto mais facilmente quanto mais ativo é o clima. Uma chuva abundante ou uma fusão de neve pode provocar uma catástrofe. Os sulcos produzidos pelas águas são dissolvidos facilmente pelo trator e os danos geomorfológicos não são os mais graves. Porém alguma camada de solo fértil sempre é arrastada. Toda inversão em trabalho e adubagem que o campesinato tinha incorporado ao solo se perde e pode ter como consequência uma duradoura baixa de rendimento. As mesmas colheitas só serão obtidas graças a doses de fertilizantes ampliadas.

Em geral, não se tem em conta o cálculo de tais perdas. É um erro. Representam muito no balanço de uma agricultura. Na União Soviética o desenvolvimento do cultivo mecanizado, permitido pela socialização e pela regeneração dos solos cultivados não proporciona só vantagens. Em certos colsoses e solcoses os rendimentos têm diminuido catastroficamente por conta de um enorme processo de erosão. Preconizam-se medidas para contê-la, porém com frequência depois da mecanização e dos danos provocados. Cortam-se sobretudo as ladeiras fazendo-as em faixas, traçadas geralmente nas curvas de nível, dedicadas umas ao trabalho agrícola e outras ao capim e árvores frutíferas. Desse modo, freia-se as enxurradas e a erosão não chega a concentrar-se num ponto. As faixas de grama desempenham o papel de pente, os produtos arrastados se depositam nelas e vêm a fertilizá-las: não se tem perda de todo. Todavia, progressivamente, o solo, limpado aqui e esgotado acolá, acabará igual aos terraços característicos de alguns de nossos campos. Também nos Estados Unidos cortam-se em degraus as encostas que sofrem erosão.

Por conseguinte, uma verdadeira recuperação de terras deveria vir acompanhada de um remodelado dos terrenos que contribuisse para estabilizá-los frente à erosão agrícola e permitisse evitar que as vantagens adquiridas por um lado sejam contrarrestadas polos inconvenientes surgidos de outro.

Por exemplo, nas encostas da Gasconha, o desenvolvimento do cultivo do milho, muito rápido, acentúa consideravelmente a erosão, porque esta planta é uma das mais perigosas deste ponto de vista. Seria conveniente localizá-la ali onde o risco de erosão fosse mais débil, sobretudo no fundo dos vales, o que implica o seu saneamento. Haveria que reservar as vertentes, sobretudo as que são mais inclinadas, para pastos ou campos artificiais, cujo rendimento não será satisfatório senão com irrigação complementar. Em muitas regiões de colinas, dedicadas ao policultivo, haverá que adaptar-se o desenho das parcelas recuperadas às exigências da luta contra a erosão, adaptando-as paralelamente às curvas de nível nas vertentes, limitando sua largura e separando-as às vezes com franjas de hortas. Os campos devem localizar-se onde a passagem das águas for demasiado forte sobre a terra lavrada e provoque o arrasto de superfície.

Não alimentamos ilusão e sabemos muito bem que tal remodelagem das terras chocará com grandes resistências, tanto como a recuperação. Porém, não far-se-á? Além do mais, essa necessária remodelagem de muitas de nossas áreas agrícolas está relacionada com uma evolução econômica na qual o Tratado de Roma deve desempenhar um importante papel e não se fará em poucos meses. Exige também uma séria preparação se não se quer desacreditar em realizações apressadas uma ação de longo alcance. É preciso, portanto, reunir desde agora os dados básicos associando estreitamente edafólogos, agrônomos e geógrafos em um trabalho de equipe. No que se refere à geomorfologia, as investigações preparatórias consistirão em duas séries de estudo:

- Uma análise mais detalhada dos processos da morfogenese agrícola por meio de medidas sobre o terreno para os quais haverá que inspirar-se nos métodos estabelecidos por C. Rougerie. Há que medir as caudais que percorrem as terras cultivadas em diversas circunstâncias meteorológicas e compará-los com as condições dos solos, do relevo e das culturas diferentes afim de determinar a superfície-limite do escoamento concentrado e precisar as modalidades do escoamento difuso. A superficie-limite do escoamento concentrado permitirá fixar um tamanho limite às parcelas, porque em nenhum caso deve ultrapassá-lo uma parcela de cultivo.

Efetuar-se-ão também tomadas de amostras da água para estabelecer a natureza dos diversos materiais dissolvidos nela e suas porcentagens. Avaliar-se-á igualmente os transportes de limo e argila em suspensão. Todas estas medidas serão tomadas em campo, em bacias de algumas centenas de hectares e, por conseguinte, a uma escala que permita transportar ao âmbito geral da natureza os resultados obtidos nas parcelas experimentais cuja superfície não passe, em geral, de uma centena de metros quadrados;

Levantamento cartográfico detalhado das terras a escalas cadastrais (111000 a 1115000), concebidos segundo o princípio dos mapas geomorfológicos porém com um fundo edafológico. Poder-se-á utilizar sobretudo mapas geoedafológicos da A. Journaux. Representar-se-á neles todos os fenômenos que interessam ao meio agrícola: zonas de inundação, de escoamento difuso, de escoamento concentrado mais ou menos frequente, os fenômenos de arrasto de superfície do solo, de voçorocas abertas ou não pelos cultivos, de solifluxão, etc.

Frequentemente o arrasto de superfície dos solos será apreciado unindo a observação geomorfológica e a análise edafológica porque esta última permite, nos solos de horizontes mal diferenciados, reconhecer a profundidade inicial de horizontes que se encontram atualmente em afloramento. Igual interesse se concederá aos fenômenos de acumulação e coluvionamento e aos solos enterrados. Edafólogo e geomorfólogo estarão estreitamente relacionados nessa cartografia, o que responde às exigências do remodelado da terra, que não se pode conceber sem uma sólida base edafológica. Para tais estudos podemos usar da experiência adquirida no exterior.

Na Alemanha Federal se efetuou investigações desse gênero. Também se fez na França alguns ensaios que pelo menos permitem assimilar alguns problemas de método. Seria fácil desenvolver tais investigações e situá-las, em alguns anos, ao nível da aplicação sistemática. Os gastos necessários seriam supreendentemente modestos com relação às exigêncías da maior parte dos ramos científicos.

A Geomorfologia e a colonização agrícola

Os problemas que se colocam ao valorar do ponto de vista agrícola regiões pouco ou nada exploradas são sensivelmente diferentes. Não se trata de paliar os riscos que uma modificação em um sistema existente fará aparecer, mas de impedir as consequências verdadeiramente desastrosas que possam trazer um transtorno completo do equilíbrio natural.

Experiências desastrosas

Temos certo número de exemplos para demonstrar que esses riscos são bem reais e de temível amplitude. A este respeito pode-se falar da agricultura mineira ou de Ralrbwirtschnfr. Com efeito, em algumas colheitas dilapida-se o capital edafológico constituído pela terra e logo esta é abandonada em estado que já não resta opção para cultivá-la de novo. Foi com frequência o caso dos Estados Unidos antes de criar-se, diante da evidência, um serviço de conservação dos solos, que é um dos modelos no gênero.

A utilização do solo anteriormente fazia-se queimando-se as matas, lavrando-se nas encostas no sentido da declividade e repetindo-se anos após anos, sem esterco ou fertilizantes, o mesmo tipo de cultura. Sob um clima geralmente agressivo, os resultados foram lamentáveis. Em um século, perto de um quarto do espaço agrícola foi tão intensamente desgastado pela erosão que quase foi dado por perdido. A morfogênese alcançou uma enorme intensidade: abriram-se sulcos nas vertentes, escavaram-se barrancos de vários metros, enormes massas de sedimentos foram levadas para o fundo dos vales e embocaduras dos rios. Nunca os fenômenos naturais alcançaram tais proporções em tão pouco tempo.

Em trinta anos, nas grandes planícies, os campos de trigo deram lugar a montes de dunas de vez que o vento levou para longe, sob a forma de tempestades de poeira (dust bowls), todos os elementos finos de um solo cujo monocultivo extensivo havia privado de estrutura. Os danos não se limitaram à agricultura: o abastecimento d'água esgotou-se porque diminuiu a alimentação das nascentes; as inundações se fizeram mais bruscas e maiores devido ao maior escoamento superficial das águas das chuvas; a navegação foi prejudicada pelo acúmulo dos sedimentos depositados no leitos dos rios; os litorais encheram-se de lama e foram abandonados pelos barcos. Em consequência, a mais rica região do mundo teve de entregar-se a um paciente esforço de recuperação, que, apesar da ajuda do Estado, não impediu uma crise agrícola permanente e a deserção dos habitantes do campo. O fazendeiro das terras erodidas já não se enriquece. Vive inclusive geralmente mal e contrasta com as novas regiões nascidas da irrigação a oeste.

No Brasil, entre os estado do Rio de Janeiro e de São Paulo, o espetáculo do vale do Paraíba do Sul é lamentável. Um semi-abandono rural sucedeu a uma rica produção cafeeira que começou fazia um século. Destruiu-se barbaramente a cobertura florestal, a ferro e fogo, para plantar o café que, durante um certo tempo, substituiu as fabulosas minas de ouro do Estado de Minas Gerais. Os latossolos foram expostos aos agentes atmosféricos em pendentes de vinte a trinta graus. Aconteceu o que se temia. A erosão destruiu rapidamente os horizontes amarelos superficiais, os únicos que constituem um solo verdadeiro, e denudaram as camadas avermelhadas inferiores, estéreis. Ressecadas nas estiagens e endurecidas, oferecem nos períodos chuvosos um solo insuficientemente permeável. Começaram a formar-se voçorocas de vinte a trinta metros de espessura. O cultivo teve que ser abandonado e isto deu azo a imensos pastos pobres, salpicados de matagais, lacerados por desbarrancamentos, cortados pelas feridas abertas por grandes deslizamentos provocados pelas chuvas torrenciais. São necessários um a dois hectares para alimentar a um animal e uma população rural reduzida a uma densidade de cinco habitantes por quilômetro quadrado migrou rapidamente para o trabalho nas fábricas que se implantaram em ambas capitais. Trinta anos de agricultura mineral deram como resultado esta devastação, que, por desgraça, não é uma exceção no Brasil.

No mundo, por toda parte, a onda demográfica atual lança homens famintos à conquista de terras novas. Impulsionados pela necessidade, aferram-se eles à natureza usando dos meios mais primitivos. A colonização espontânea de certos distritos de Sumatra sobre queimadas veio a dar no cultivo das vertentes e a uma imensa crise de morfogênese antrópica. As possibilidades arrozeiras do fundo d6s vales foram malbaratadas talvez irremediavelmente. Porém, como pedir a homens famintos, abandonados a si mesmos, a organização de arrozais de regadio, sobretudo numa época de sputniks e de experiências atômicas? A gravidade do problema se mede em porcentagens de expansão demográfica. Já era hora de não deixar-se arruinar por umas poucas colheitas as terras cultiváveis de extensão limitada. Isto supõe, naturalmente, inversões, e esta questão supera em muito a geomorfologia e a edafologia. Estas, entretanto, estão implicadas no problema.

Um exemplo alentador


Com efeito, o cultivo de um território não explorado só deveria fazer-se depois que alguns estudos preliminares tivessem permitido determinar suas aptidões do tríplice ponto de vista geomorfológico, edafológico e ecológico. Um exemplo de utilização desse método nos dá o delta do Senegal. Nesta região, o problema era particularmente complexo porque tratava-se de implantar um sistema de irrigação. Os métodos empregados foram os básicos: análise detalhada dos processos e cartografia do substrato físico.

A análise dos processos permitiu determinar a origem do sal como o principal obstáculo ao cultivo. A maior parte provém da deflação eólica. O restante, vem da ascensão capilar depositada nas areias argilosas de certos áreas constituídas quando o delta atual formava um sistema de lagunas muito salgadas e uma parte insignificante de águas estuarinas que remontam aos braços do no na estação seca foi alijada para algumas depressões quando da subida das águas. Sobre as formas de relevo dunquerquianas a vegetação reduz-se a algumas matas, o que permite ao vento estender pela superfície do delta a argila salgada que carrega. Um sistema de ordenamento beneficiava essas áreas de relevo geralmente insubmergíveis, para instalar nelas canais de distribuição da água, habitações, construções agrícolas, etc, permitindo bloquear a deflação eólica e aproveitando, para usos não agrícolas, as terras quase improdutivas. A inclinação contínua e regular dessas áreas presta-se perfeitamente para a instalação, com um gasto pequeno, de uma rede de distribuição d'água por gravidade. Outro aspecto importante da geodinâmica é o trabalho do próprio rio. O regime, com a alternância de uma elevação do volume d'água de uns seis mil metros cúbicos por segundo e de um período de estiagem no qual o escoamento quase cessa, permitindo às águas marinhas avançar sobre os braços principais, é o gerador de particularidades tais como os processos de erosão eólica. Nessas épocas produz-se um efeito de ação das águas particularmente intenso justamente antes dos transbordamentos, que provoca um rápido deslocamento dos bancos de areia e o socavamento intenso das margens. Formam-se meandros que evoluem então com relativa rapidez, e localizam-se frequentemente ali onde o leito atinge uma massa de areia de dunas quaternárias. Uma melhora das condições de navegação pode, entretanto, lograr-se atuando-se sobre pontos adequados.

Todos os aspectos da atual dinâmica, assim como as paleoformas herdadas de uma complexa evolução recente, marcada por alternâncias de períodos úmidos e períodos secos, foram representados em mapas geomorfológicos de 1/50.000 que levantamos. Fizemos constar também a natureza litológica das formações em afloramento. Indicou-se a idade de cada tipo de solo, o que permite determinar-se aexistência de paleosolos, sobretudo de solos característicos das dunas antigas e devidas a um clima mais úmico que o nosso. O mapa serviu de ponto de partida, com levantamentos edafológicos e geobotânicos (que dão uma visão sintética dos meios ecológicos), para o estabelecimento de planos de ordenamento do delta, sobretudo para o projeto de represamento do Dagana. Graças a isso, foi possível delimitar as regiões, para as quais foram feitos levantamentos topográficos detalhados. Com efeito, tendo-se a disposição dos depósitos aluvionais, as bacias de depositação, os pequenos deltas de ruptura dos depósitos atuais e antigos, pôde-se fazer uma idéia mais precisas das diferenças de altitude entre as unidades geomorfológicas situadas uma ao lado das outras e traçar as grandes linhas de um plano de ordenamento. Os levantamentos topográficos precisos, que são trabalhosos, foram limitados a perfis e itinerários escolhidos em função de dados proporcionados pelo mapa geomorfológico.

Graças a isto, foi possível determinar uma política de ordenamento que tem em conta a dinâmica natural. Por exemplo, foi descartado um projeto de represa em Guina, rio acima, que reteria as águas no começo das cheias para soltá-las abruptamente com a intenção de diminuir as perdas por evaporação e provocar uma submersão mais rápida. O projeto tinha como principal inconveniente acentuar a migração dos meandros que dificultava a navegação, e não evitar o perigo de congestionar os canais e ameaçar várias aglomerações urbanas. Decidiu-se por preferir a represa do Dagana, menos cara e sem inconvenientes. Fez-se igualmente grande economia, que alcançam 30% dos trabalhos de escavação, adaptando-se o traçado dos canais e a disposição dos canteiros de arroz aos dados geomorfológicos, no lugar de adotar uma configuração mais geométrica como o que se fazia antes. Certas elevações aluvionais, reforçadas em determinados pontos, podem proporcionar excelentes diques sobre os quais correm caminhos usados para transporte. Os emissários de algumas bacias, retificados e escavados de novo, foram aproveitados para escoamento e as próprias bacias se transformaram em áreas de plantio de arroz. Nos arredores de Rosso há cinco mil hectares de arrozais ordenados diretamente em função do mapa geomorfológico.

O êxito obtido nesta ocasião fez que o Centro de Geografia Aplicada tenha sido convidado para estudar os problemas geomorfológico-edafológicos postos para o ordenamento do vale do Niger e para diversas bacias fluviais do Brasil. Em Mali, nossos trabalhos permitiram modificar fundamentalmente certos programas de valorização, sobretudo na região de Gundam. Posteriores comprovações demonstraram o grande interesse de tais investigações aos consideráveis riscos de fracasso que podem evitar.

O estudo das bases físicas sistemático dos problemas agrícolas, quer se trate de regiões antigamente cultivadas que se quer mudar, ou de países novos, é igualmente indispensável. A Edafologia e a Agronomia fornecem importante apoio e proporcionam dados originais sobre o comportamento e a natureza sobre a qual trabalha o agricultor. É possível precisar a natureza e medir a importância da Geomorfologia.

Seu lugar, na relação com a Agronomia, é um pouco parecido ao da Fisiologia com a Medicina. Sua intervenção pode revestir formas múltiplas adaptando-se a todas as situações. Apreciando a extensão dos danos que causa ao meio ambiente uma exploração agrícola mal conduzida, pode sugerir soluções variadas. Não há que esquecer que a rotação de culturas impõe ao equilíbrio natural um verdadeiro traumatismo cujos efeitos importa limitar. O ordenamento em terraços em vertentes pode efetuarse tão bem com o bulldozer nos países industrializados como com o trabalho do homem nos países que dispõem de excedentes de mão a empregar. Com frequência, o recurso do emprego da intervenção humana é a solução para os países pobres em capital e premidos pela fome. O bom conhecimento das bases físicas permite fazer esse uso com a máxima utilidade.

Em 1954 preconizamos uma política de restauração dos solos do Futa Dialon. Havia-se recorrido unicamente ao uso da mão-deobra, muito abundante em certas estações, sob a forma da murada de pedras cortando as vertentes cultivadas e impedindo seu desmoronamento. Em muitas regiões tais inversões são urgentes e as massas de trabalhadores com poucas oportunidades de emprego as aguardam com impaciência.

Nossos conhecimentos ajudarão a estabelecer o programa adaptando-o às exigências naturais, do mesmo modo como deve representar seu papel num novo modelado das terras dos velhos países agrícolas industrializados nos quais é necessário elevar a produtividade da terra ao nível da indústria, sem destruí-Ia, ou na preparação dos grandes equipamentos próprios para permitir novas colheitas em vastas extensões de áreas mal aproveitadas. Nas crises agrícolas mundiais, eles acodem oportunamente, e é urgente pedi-los, junto a outros tantos campos científicos, a todos que possam prestar serviços se se quer que nossos filhos possam comer o que precisam.

4 de dez. de 2009

Resumo: Economia espacial : críticas e alternativas

Este livro reúne esscritos produzidos entre 1970 e 1977. Em todos eles, a problemática do espaço como objeto de teorização ou de planejamento está presente. Sua preocupação é a construção de alternativas válidas às teorias existentes na época, que não levavam em consideração as especificidades dos países subdesenvolvidos. No livro, autor expõe suas críticas a tais teorias que seriam “instrumentos privilegiados da difusão do capital, tanto para agravar o subdesenvolvimento como para manter a estrutura de classes e assegurar a expansão da pobreza”.

Autor: Milton Santos
EDUSP

Resenha: A natureza do espaço

A NATUREZA DO ESPAÇO. Técnica e tempo, razão e emoção.
Milton Santos
Editora Hucitec, São Paulo, 1996

Quando lança em 1978 Por Uma Geografia Nova (da crítica da geografia a uma geografia crítica), Milton Santos proclama a necessidade de uma teoria social na Geografia. Em 1996, oferece-nos essa teoria social em A Natureza do Espaço (técnica e tempo. razão e emoção). Nesses 18 anos, toda uma progressão em livros, coletâneas, ensaios que avançam esse intuito: Por uma Geografia Nova se desdobra no Metamorfoses do Espaço Habitado (fundamentos teóricos e metodológicos da geografia), de 1988, já antes passando pelo Pensando o Espaço do Homem, de 1982, e Espaço & Método, de 1985, e desemboca no Técnica, Espaço, Tempo (globalização e meio técnico-científico e informacional), de 1994, que antecipa A Natureza da Geografia.

Com risco de reduzi-la ao essencial, não erraria em dizer que a teoria do espaço de Milton Santos fundamentalmente é uma teoria do lugar. Por Uma Geografia Nova contém os elementos do corpus que se oferece desenvolvido em A Natureza do Espaço. O espaço como histórico produzido, instância estrutural da totalidade, mediação determinada-determinante da história, são noções básicas do livro de 1978, que se robustecem e ganham o estatuto do edifício teórico no livro de 1996. A novidade corre por conta do papel crescente que a técnica, mas, sobretudo, o território, na sua relação ontológica com o espaço (o território é entendido como uma dimensão do espaço) e interativa com a técnica, vão adquirir na trajetória da teoria do espaço enquanto uma teoria social de Milton Santos.

Por outro lado, a teoria social exposta em A Natureza do Espaço é uma teoria da ação. O espaço é o resultado da ação e objeto articulados, potência e ato dialeticamente integrados num sistema (palavra perigosa). Não se trata de uma teoria da ação pura. A ação exprime-se e se realiza no objeto. O objeto tem autonomia de existência, mas não tem autonomia de significação. O que ele é, vem das diferentes relações que mantém com o todo. A ação é quem lhe dá essa ligação e sentido, dado o seu caráter de intencionalidade, uma essencialidade portada pela técnica na forma da divisão do trabalho e que liga ação e objeto numa relação de sujeito-objeto.

Condição epistêmica, Milton Santos reolha por conseguinte a técnica, ao tempo que geograficamente a reinventa. Mais que artefato ou mediação na relação homem-meio, a técnica é em Milton Santos o processo constitutivo do território, técnica e território vivendo uma relação recíproca de constituição. Não há território sem ação técnica, e não há técnica fora de um território. Daí que a técnica só exista como meio-técnico.

A inflexão dialética é o movimento de diversificação da natureza, processo mediante o qual a natureza se renova pela modificação dos seus aspectos, renovando sua identidade, e à qual o homem superpõe a divisão do trabalho (natureza natural e natureza socializada do livro de 1978, reinventadas no de 1996). A totalidade tão buscada pelo geógrafo é não mais então que uma dialética de iversidadeunidade, onde cada modo de diversificação sucede um outro modo de diversificação, a diversidade se resolvendo na unidade e a unidade se reabrindo na diversidade, numa dialética de trocas de posição constantes sobre a qual a ação humana intervém e cujo resultado é o lugar.

O lugar é, assim, o ponto do recorte territorial por cujo intermédio a pluralidade total dos elementos encontra sua síntese. E sobre cujo suporte a técnica determinase como território e o território determina-se como técnica, território e técnica integralizando-se num meio técnico (expressão que sugere um feliz resgate do gênero de vida de La Blache, numa ótica ao mesmo tempo clássica e nova da relação homem- eio).

Síntese onde o objeto ganha significação (deixa de ser coisa, dado da natureza, e vira objeto, dado da história humana), o lugar reúne-se aos outros lugares e vê no seu conteúdo e interior definir-se o processo da produção técnica do espaço. Desse modo, a história do espaço coincide e se revela na história da técnica, e vice-versa, cada mudança na divisão do trabalho presenciando a recriação do espaço. De início, a técnica exprime-se como meio técnico, estágio em que é um prolongamento do corpo e potencialidade da ação imediata dos homens. Mais adiante, já num estado da dimensão econômica ampliado sobretudo no plano da esfera da circulação, evolui para tornar-se um meio técnico-científico. Por fim, chega aos dias de hoje, o tempo do espaço construído como uma universalidade empírica, e tornase meio técnico-científico e informacional.

Cada etapa conhece um lugar. Assim, do lugar do meio técnico ao lugar do meio técnico-científico e informacional, a configuração geográfica evolui do espaço singular ao espaço recortado na fragmentação da horizontalidade e verticalidade do mundo global de hoje.

A teoria do espaço afirma-se então como uma teoria do lugar. Um discurso capaz de recuperar a dialética das interações, desaparecida na síntese das velhas teorias do espaço genérico ou ilhado da teoria regional; rejuvenescer o imenso repertório vocabular perdido na dissolução das identidades (espaço, escala, distâncias são verbetes que nem mais fazem parte dos dicionários de geografia, migrados para os dicionários de cartografia, onde tão somente aparecem); e retomar com sucesso o velho projeto de unir numa só idéia-força sociedade e natureza como discurso teórico da ação geográfica.

Fortemente influente nas pesquisas entre os geógrafos da chamada vertente humana, a teoria da ação de Milton atingirá cedo ou tarde aqueles que voltados para a chamada geografia física carecem da visão unitária dos próprios processos naturais, e ainda não descobriram-na na categoria totalizadora do lugar. Tal como Milton Santos a propõe e entende. Ao menos, oferece ao bom debate.

(Ruy Moreira)
Fonte: http://www.uff.br/geographia/ojs/index.php/geographia/article/view/13/11

30 de nov. de 2009

Sumário: Por uma geografia nova


POR UMA GEOGRAFIA NOVA : Da Crítica da Geografia a uma Geografia Crítica

Autor: Milton Santos

Introdução.
Uma Geografia Nova?.
Um Projeto Ambicioso.
Um Risco Necessário.

Primeira Parte

A CRÍTICA DA GEOGRAFIA
I. OS FUNDADORES: AS PRETENSÕES CIENTÍFICAS.
A Ideologia da Geografia
A Geografia Colonial.
O Determinismo e Suas Seqüelas
A Geografia Cultural e os Gêneros de Vida
A Falência da Geografia Clássica
Os Perigos da Analogia.
Possibilismo versus quê?
2. A HERANÇA FILOSÓFICA
As Fontes.
O Hegelianismo e o Marxismo
De Descartes ao Ecletismo Total
3. A RENOVAÇÃO DO APÓS- GUERRA: “A NEW GEOGRAPHY”
4. A GEOGRAFIA QUANTITATIVA
A Quantificação em Geografia
Linearidade, Colinearidade, Et coetera
Medir para Refletir ou Refletir para Medir?
Os Problemas da Abordagem Quantitativa
Paradigma ou Método?
O Pecado Maior
5. MODELOS E SISTEMAS: OS ECOSSISTEMAS
A Análise de Sistemas
Os Ecossistemas
Sistemas e Quantificação
Os Modelos em Geografia
Construção e Eficácia dos Modelos
6. A GEOGRAFIA DA PERCEPÇÃO E DO COMPORTAMENTO.
A Percepção: Sujeito versus Objeto?
Comportamento ou Práxis?
7. O TRIUNFO DO FORMALISMO E DA IDEOLOGIA
Geografia, Planejamento, Utilitarismo
O Reino do Empirismo
A Exclusão do Movimento Social.
A Tara Ideológica.
8. O BALANÇO DA CRISE: A GEOGRAFIA VIÚVA DO ESPAÇO
A Reprodução do Saber
O Empiricismo Abstrato.
Do Imperialismo à Perda do Objeto
O Espaço Pulverizado
A Geografia, Viúva do Espaço.
Lições e Promessas da Crise.

Segunda Parte

GEOGRAFIA, SOCIEDADE, ESPAÇO
9. UMA NOVA INTERDISCIPLINARIDADE
O Isolamento da Geografia.
Vantagens da Interdisciplinaridade
Geografia e Interdisciplinaridade
As Etapas da Interdisciplinaridade
A Necessidade de uma Definição do Objeto da Geografia.
I0. UMA TENTATIVA DE DEFINIÇÃO DO ESPAÇO
Definir a Geografia ou o Espaço?
O Problema da Autonomia e das Categorias Ana líticas
Objeto Científico e Teorização
Um Esforço de Definição do Espaço
II. O ESPAÇO: MERO REFLEXO DA SOCIEDADE OU FATO SOCIAL?
Uma Forma de Percepção?
Hegel e o Espaço
O Espaço, um Reflexo?
Um Fato Social?
I2. O ESPAÇO, UM FATO?
A Reprodução do Padrão Espacial
A Mobilidade do Capital é Relativa
O Espaço na Totalidade Social
O Papel das Rugosidades.
O ESPAÇO COMO INSTÂNCIA SOCIAL
Uma Estrutura Social como as Outras?
Uma Estrutura Subordinada?
A Especificidade do Espaço
O Espaço como História e Estrutura.

Terceira parte

POR UMA GEOGRAFIA CRÍTICA
I4. EM BUSCA DE UM PARADIGMA
Toda teoria é Revolucionária
Paradigma e Ideologia.
A Natureza como Paradigma
I5. O ESPAÇO TOTAL DE NOSSOS DIAS
Produção e Espaço
A Universalização da Economia e do Espaço
Universalização Perversa e Papel da Estrutura Interna
Totalidade e Dialética do Espaço
Instrumentos de Trabalho e Espaço
Distribuição da Sociedade Total no Espaço
Estrutura, processo, Função, Forma
I6. ESTADO E ESPAÇO: O ESTADO-NAÇÃO COMO UNIDADE
GEOGRÁFICA DE ESTUDO.
As novas Funções do Estado
O Estado nos países Subdesenvolvidos.
O Estado Intermediário entre as Forças Externas e Internas
Ação do Estado sobre os Subespaços
O Estado e as Transformações Espaciais
Espaço e Território
I7. AS NOÇÕES DE TOTALIDADE, DE FORMAÇÃO SOCIAL E A
RENOVAÇÃO DA GEOGRAFIA
Totalidade e Espaço
Formação Social e Espaço.
A Noção de Formação Social.
Formação Social e Realidade nacional
Formação Social e Renovação da Geografia
I8. A NOÇÃO DE TEMPO NOS ESTUDOS GEOGRAFICOS
A Difusão de Inovações
O Enfoque Espaço-Temporal e o Tempo Empírico
A Necessidade de uma Periodização
O Espaço como Acumulação Desigual de Tempos
A Noção de “Tempo Espacial”
As Rugosidades do Espaço.

Conclusão: A GEOGRAFIA E O FUTURO DO HOMEM
Espaço-Mercadoria e Geografia de Classes
Por uma Geografia Liberada
Causa e Contexto.
O Joio e o Trigo: A Separação do ideológico
Espaço e Liberação.
Bibliografia

26 de nov. de 2009

Geografia e cinema

Gonzalo Infante vive numa bela casa num bairro de classe média no Chile de 1973. Pedro Machuca mora num loteamento ilegal a próximo a escola. Os dois meninos vivem na no Chile de Allende quando o diretor da escola abre as portas do colégio para os filhos das famílias pobres do loteamento. Assim Pedro Machuca e Gonzalo, tornam-se grande amigos enquanto Pinochet dá seu golpe.

O filme além de extremamente delicado é excelente para se discutir a situação políticas do Chile no período de transição entre o governo socialista de Allende e o golpe militar de Pinochet.

Direção: Andrés Wood (2004)

Salvador Dali: O instante da minha morte

25 de nov. de 2009

Entrevista: Lana Cavalcanti

Revista Tamoios - Julho / Dezembro - Ano II, N°.2, 2006 - ISSN 1980-4490
ENTREVISTA COM A PROFESSORA LANA DE SOUZA CAVALCANTI
Diógenes
Vânia

Apresentação

Esta entrevista com a Professora Lana de Souza Cavalcanti foi realizada por dois alunos do curso de Geografia da Faculdade de Formação de Professores da UERJ no segundo semestre de 2005.1 A idéia da entrevista surgiu nas discussões acerca da contribuição da autora para os debates sobre o ensino de Geografia, na disciplina “Metodologia do Ensino da Geografia”, a partir da produção sobre a aprendizagem dos conceitos geográficos. Depois de contatada, a professora prontamente aceitou o convite para esse diálogo, que ficou organizado da seguinte maneira: as primeiras questões tratam de conhecer a autora, as suas escolhas e trajetória profissional. Em seguida, a conversa segue para as questões que os leitores apresentam à autora – um encontro entre da leitura com seus leitores. Prosseguindo na prosa os questionamentos sobre a formação de professores, os avanços no debate da Geografia que ocorrem após o fim da década de 90, e por fim, as inquietações e perguntas dos licenciandos são apresentadas à autora como preocupações desses futuros professores em condição de inacabamento. Destacamos a abordagem positiva das questões e dos desafios que se têm enfrentado em relação ao ensino de Geografia.

.: Bloco 1 – Formação / Perfil da autora

Como foi sua trajetória escolar até o ingresso acadêmico?

Estudei basicamente em escolas públicas de Goiânia, Goiás. Fiz o 2º Grau no contexto da Reforma de Ensino de 1971, dentro do qual estava previsto um curso profissionalizante. Fiz inicialmente uma opção pelo curso de Secretariado Executivo, sem muita consciência do significado prático do curso que fazia. No 3º ano do 2ºGrau, desisti da profissionalização e passei a fazer o curso preparatório de vestibular, em uma escola particular. Sempre fui boa aluna, estudava com disciplina e seriedade. Ingressei em Geografia como primeira opção, e tinha uma idéia mais ou menos clara de que queria ser professora. Tenho nessa trajetória de formação a influência forte de meu pai, que também foi professor durante boa parte de sua vida.
Quais suas experiências profissionais na área de educação e ensino de Geografia?
Tão logo ingressei em meu curso de graduação, em 1976, iniciei minha atividade de professora em um colégio de 2º. Grau, da rede privada de Goiânia. Trabalhei em dois colégios da rede privada durante aproximadamente 4 anos. Naquela época, e principalmente em escolas privadas que tinham como objetivo principal a preparação do aluno para o vestibular, o ensino de Geografia caracterizava-se pela ênfase na memorização, no verbalismo, no ensino de informações descontextualizadas. Em razão dessa proposta de ensino em curso, fiquei bastante desapontada com a atividade profissional que realizava, pois estava me formando com uma idéia de Geografia e de ensino já muito marcada pelas reflexões de um movimento de renovação na área. Passei a trabalhar, a partir de 1980, com planejamento urbano e regional, em um órgão do Estado de Goiás. Foi uma experiência importante e rica na minha formação, mas também não atendia minhas expectativas de trabalhar com o compromisso de contribuir de modo mais consistente com mudanças sociais. No planejamento, trabalhei durante nove anos, mas já no último ano associei essa atividade com a de ensino, retornando, pois, à sala de aula, dessa vez em uma escola pública. Nesse período fiz especialização em Planejamento e participei de vários encontros e cursos locais e nacionais promovidos pela AGB. Essa participação marcou muito minha formação, com as exposições e palestras, os debates, as leituras indicadas. Passei a trabalhar na defesa de uma Geografia crítica, de um ensino crítico de Geografia, que ensinasse aos alunos as contradições da realidade a partir da leitura do espaço, como me ensinavam os mestres, como Ives Lacostes, Milton Santos, Ruy Moreira. Em 1986, ingressei na Universidade como professora da disciplina Didática e Prática de Ensino de Geografia, com dedicação exclusiva. Logo após fiz mestrado em educação, com o tema “O ensino crítico em escolas da rede pública de Goiânia”, e desde então sigo essa linha de pesquisa, no âmbito da educação.
Suas obras se complementam ou retratam caminhos possíveis e distintos em sua trajetória?
Conforme afirmei antes, minha formação foi muito marcada pela linha da chamada Geografia crítica dos anos 80. Com as categorias de análise que me pareceram mais relevantes nessa linha para pensar o ensino e também com a contribuição de uma linha progressista na área da educação, formulei minha problemática de investigação para o mestrado. Buscava, então, compreender as diferenças de propostas de trabalho dos professores de Geografia na relação conteúdo-método de ensino, detectando com essa compreensão características de um ensino crítico de Geografia. Entendia, já naquele momento, que o professor era um agente importante na definição do processo de ensino realizado. A partir de então, tenho centrado minhas preocupações no processo de ensino de Geografia em suas diferentes faces, ora enfatizando o aluno, ora o professor, ora o conteúdo, ora o método de ensino. Portanto, considero que meus trabalhos de investigação, realizados em diferentes momentos destes últimos 20 anos, são expressões de minha trajetória profissional e pessoal, com complementações, correções, superações e reformulações de rumos, próprias do investimento do sujeito frente a uma realidade tomada como objeto de conhecimento.
Qual é o sentido de ser educadora?
A educação é um fenômeno amplo de extrema relevância na produção e reprodução da história dos homens. Sendo assim, trabalhar nessa área tem o significado social e político de participar ativamente desse processo. No que diz respeito ao contexto específico da educação escolar, entendo que o principal papel do professor é o de mediador dos processos de conhecimento dos alunos que resultam em seu desenvolvimento intelectual, social, afetivo. Professores intervêm, em alguma medida, no desenvolvimento do aluno, sendo um dos mediadores na sua relação com o mundo. É uma atividade muito relevante e de muita responsabilidade social. Não se trata apenas de intervir no processo de construção de conteúdos específicos que veiculamos em sala de aula, a intervenção do professor se estende por todo um conjunto de valores, procedimentos, comportamentos interpessoais, pessoais, políticos que veiculamos no cotidiano da sala de aula.
Pessoalmente, é uma atividade que me realiza muito. O sentido de ser educador, professor, é o de poder buscar, compartilhando significados, refletir coletivamente sobre o sentido da vida, da humanidade, para além de fatos e acontecimentos concretos que marcam a vida cotidiana de cada um de nós.

.: Bloco 2 – Abordagem geral do texto
O que a provocou e inspirou a estudar o ensino da Geografia a tal ponto de transformá-la em uma tese de doutorado?

Conforme já relatei, minha formação foi marcada por um movimento dentro da Geografia que ficou conhecido como movimento de renovação, ou da Geografia crítica. Esse movimento, de fundamentação marxista, buscava explicitar a contribuição da Geografia realizada naquela época à manutenção social e, propunha uma Geografia nova, comprometida com a transformação social. Uma das referências teóricas divulgadas então era Ives Lacostes, e principalmente seu livro “A Geografia serve antes de mais nada para fazer a guerra”. Neste livro, o autor denunciava a existência de duas geografias, a geografia dos Estados maiores, profundamente comprometida com estratégias de poder, e a geografia dos professores, que organizava e veiculava um saber em sua forma mais “inocente e inútil”, justamente para dissimular a importância política que tem o conhecimento do espaço. Apresentava, então, um caminho de alterar essa ordem veiculando no ensino de Geografia um saber geográfico estratégico para a vida social. No meu quadro teórico de referência, o ensino representava e representa ainda hoje um espaço fundamental da Geografia comprometida social e politicamente com uma sociedade mais justa, mais igualitária, mais democrática. E, a partir daí, busquei investigar essa atividade em seus vários componentes para compreender as possibilidades de efetivar no cotidiano escolar essa educação geográfica, que para mim significava tanto a seleção e organização de determinados conteúdos geográficos, com enfoque crítico, quanto à opção por caminhos metodológicos eficazes à sua aprendizagem pelo aluno.
Sua metodologia baseia-se nas representações sociais dos alunos para a construção do conhecimento. Como chegou a esta opção metodológica e por quê?
A preocupação em aprofundar um entendimento de como se configuraria um ensino crítico de Geografia, de cunho dialético, me levava a estabelecer inter-relações entre Didática e Epistemologia, entre conteúdo de Geografia, método de conhecimento e método de ensino. Reflexões feitas a partir dessas inter-relações e particularmente a busca por um método de ensino fundamentado numa compreensão dialética de construção do conhecimento foram decisivas para a definição de uma problemática e de um caminho metodológico em minha tese de doutorado, na linha do sócio-construtivismo de Vygotsky . A questão principal da minha pesquisa foi formulada com base em um questionamento do próprio Vygotsky: “o que acontece na mente da criança com os conceitos científicos que lhe são ensinados na escola?” Orientado por essa preocupação, Vygotsky desenvolve uma teoria sobre o processo de formação de conceitos na criança, na qual são importantes os conceitos científicos e os conceitos cotidianos. Segundo esse autor, o conceito se forma na mente da criança (e eu diria de qualquer pessoa) a partir de dois processos, o desenvolvimento dos conceitos cotidianos e dos conceitos científicos, processos que se relacionam e se influenciam constantemente. Fazem parte, na verdade, de um único processo: o desenvolvimento da formação de conceitos, que é afetado por diferentes condições externas e internas, mas que é essencialmente um processo unitário. No nível de abstração e de generalização, o processo de formação de conceitos cotidianos é “ascendente” e impregnado de experiência; os conceitos científicos surgem de modo contrário, seu movimento é “descendente”, começando com uma definição verbal com aplicações não espontâneas e passando a adquirir maior concretude, impregnando-se na experiência. Pois bem, esse entendimento de formação de conceitos destaca a importância dos conceitos cotidianos. Na pesquisa de doutorado, estava buscando compreender os processos de formação de conceitos geográficos nos alunos, e, para tanto, entendia que era necessário explicitar conceitos geográficos cotidianos e científicos elementares da formação do pensamento geográfico, na medida em que esse seria um caminho fecundo para definir metodologia de ensino. Assim, conhecer um pouco mais de perto os conceitos geográficos cotidianos revelou-se uma necessidade da investigaçao e a teoria das representações sociais com suas indicações de análise, como o destaque às imagens, as informações e as atitudes a respeito do objeto representado, surgiu como um importante caminho metodológico. As representações sociais se expressam em conhecimentos não-verbais, não elaborados, nem sempre conscientes, e sendo assim me ajudariam a acercar-me dos conceitos geográficos cotidianos dos alunos e professores.

.: Bloco 3 – Formação de professores e transposição didática
Quais foram as maiores dificuldades encontradas ao longo da pesquisa? Diante disso, o que diria para os licenciandos, iniciantes nesse campo?

Creio que uma grande dificuldade, não sei se é a maior mas seguramente é uma das primeiras e por isso tão importante, é a de definir o problema específico da pesquisa, a partir de questões formuladas pelo sujeito que pesquisa, e a delimitação do objeto, decorrente dessa definição. Quando nos colocamos “diante” da realidade, como sujeito de conhecimento, temos uma mirada ampla e com muitas indicações de variáveis que envolvem aquela realidade e suas correlações. Por essa razão, há uma tendência a querer estudar uma grande temática a partir de uma problemática muitas vezes vagamente definida. Então, uma necessidade inicial para uma empreitada bem sucedida na pesquisa é a de delimitar bem o objeto e a forma como irá abordá-lo, tendo como base a natureza de uma pesquisa acadêmica, na maioria das vezes realizada individualmente, com pouquíssimos recursos e com prazo definido a partir de um padrão de eficácia institucional. É preciso então selecionar, dentro de uma série de questões que emanam de um objeto abordado, aqueles aspectos que parecem ser mais relevantes para o momento, aqueles aspectos que mobilizam com maior intensidade o sujeito da pesquisa, aqueles aspectos que parecem mais viáveis de serem levados a cabo por aquela investigaçao e aqueles que possam trazer elementos que contribuam para a compreensão do objeto, sempre um processo em curso.

Como realizar a transposição didática diante das diversas deficiências da formação de professores?

Esse é um tema que tem me preocupado nos últimos tempos, que considero bastante relevante quando refletimos sobre a problemática do ensino de Geografia. O conceito de transposição didática, ainda que se possam fazer adequações e/ou críticas ao seu entendimento por Chevallard, é bastante adequado para entender mais concretamente os diferentes aspectos que envolvem o processo de constituição dos conteúdos de Geografia que se veiculam na escola. Mas, é preciso levar em conta que sua constituição não está restrita ao espaço escolar e ao professor que organiza conteúdos para ministrar um curso específico. Trata-se de um processo mais amplo, que ocorre em vários níveis e envolve um conjunto de formulações teórico-metodológicas direcionadas ao ensino. Estou destacando isso para explicitar o entendimento de que o professor precisa ter consciência de que a Geografia que ele ministra na escola não é a ciência geográfica, tal como é produzida na academia, está relacionada com ela, mas esta relação não é de identidade. Sendo assim, ele não precisa se angustiar por não “aplicar” seus conhecimentos acadêmicos na prática docente, pois a Geografia escolar tem uma especificidade que advém em parte do movimento autônomo dos processos e práticas escolares e em parte das indicações formuladas em outras instâncias, como as diretrizes curriculares e os livros didáticos, que são em alguma medida composições da Geografia escolar. Compreendendo assim o processo, o professor poderá perceber-se como parte desse conjunto de “operadores” ou “realizadores” da transposição didática da Geografia, assumindo nele uma posição sujeito, com relativa autonomia e acentuado senso crítico. Nessa linha, está a evidência da relevância de bons projetos de formação profissional, inicial e continuada.

.: Bloco 4 – Avanços a partir do texto – 1998
Como a professora identifica e avalia as mudanças desde a publicação?Realizou-se algum debate nas escolas após o resultado da pesquisa? Qual é seu tipo de relação e contato com as escolas desde a conclusão da pesquisa?


Quero tomar a liberdade de responder às perguntas deste bloco de forma conjunta, porque me parecem estar bastante articuladas entre si. Quando terminei a pesquisa e defendi a tese, investi em sua organização em forma de livro, porque entendi que essa era a melhor forma de divulgar os resultados do meu trabalho, o que para mim era um dever de pesquisadora e um compromisso com o objeto pesquisado. Não tive um contato mais efetivo com as escolas que havia pesquisado, a não ser para divulgar a publicação do livro, mas entendia que a contribuição de um trabalho como esse não está ligada diretamente aos espaços mais específicos da coleta de dados mas à toda a comunidade envolvida pela problemática trabalhada.
No caso da minha pesquisa, entendo que a repercussão foi bastante satisfatória, muitos colegas, professores de Geografia das escolas estaduais e municipais como as pesquisadas, e também muitos alunos universitários que seguramente vão se incorporando ao conjunto de profissionais que tem a responsabilidade de realizar o ensino de Geografia, tiveram e têm contato com seus resultados, através de exposições orais que fiz, mas através do livro principalmente, avaliam sua pertinência e têm se apropriado de alguns indicativos que lhes fazem mais sentido para orientar sua prática. Não creio que seja possível avaliar mudanças na prática de ensino de Geografia através do meu trabalho, a relação entre o trabalho que realizei e a prática de ensino não é direta em nenhuma medida e estabelecer essa relação extrapola os propósitos da pesquisa e minha trajetória de pesquisadora.
Entendo, por outro lado, que a pesquisa que realizei lidava com uma problemática já presente no campo da didática da Geografia e, por isso mesmo, vários de seus aspectos já se constituíam em preocupações de colegas da área, resultando também em outras pesquisas. Esse conjunto de trabalhos a que me refiro tem sido realizado a partir dos anos 90 em várias partes do Brasil e tem, efetivamente, trazido importantes contribuições para a compreensão do ensino de Geografia. Entre essas contribuições, eu destacaria alguns aspectos, como: a explicitação de uma meta relevante do ensino dessa matéria que é a de formação do raciocínio geográfico e de seu potencial para a formação da cidadania; as orientações teórico-metodológicas sobre a linguagem cartográfica e outras representações e sua importância para o raciocínio geográfico; as análises sobre o processo de formação de conceitos geográficos; a consideração da relevância de se investir na educação ambiental, a necessidade de se considerar no processo de ensino os conhecimentos dos alunos. Todas essas contribuições têm sido responsáveis por mudanças, maiores ou menores, na prática de ensino de Geografia, influenciando inclusive o processo da transposição didática dos conteúdos.

.: Bloco 5 – Perspectivas dos licenciandos. Apresentamos para a professora alguns questionamentos que nos são pertinentes na condição de licenciandos:
A universidade nos proporciona uma fase de intensas descobertas e transformações através do contato com o conhecimento científico, do universo acadêmico (debates, manifestações públicas, trabalhos de campo, etc.) e a proximidade com alguns professores que nos fazem acreditar realmente que um outro mundo é possível e que a Geografia possui um papel importante na construção deste mundo. Isto contribui para o embasamento da formação ou é uma utopia?


Já se discutiu muito sobre o conceito de utopia, se com ele se quer significar algo que está fora do alcance do possível ou se se quer dar um sentido a um projeto que está em outro lugar, mas que é possível tê-lo como referência para nossas ações aqui e neste lugar. Já se discutiu também a necessidade de se ter ou não utopias, e já se denunciou muito que estamos em uma época de crise ou de fim de utopias. Eu penso que considerando a segunda concepção, nós, professores, que atuamos profissionalmente e diretamente na formação da sociedade, temos que manter nossas utopias muito claras, muito refletidas, sempre reavaliadas, mas sempre presentes em nossos projetos. Creio, então, que acreditar em outros mundos, acreditar que o projeto da humanidade está em processo permanente e que nada portanto é estático, acreditar nas diversas possibilidades de dar encaminhamento aos nossos problemas, acreditar que a Geografia é uma dessas possibilidades e enquanto tal tem um papel relevante na compreensão das práticas sociais presentes e de outros tempos, passados e futuros, é um bom embasamento profissional.
Um temor que nos preocupa é em relação a como o professor deve lidar com a complexidade do conteúdo geográfico, tendo em vista a necessidade de acrescentar conteúdos do cotidiano no dia-a-dia. Por exemplo, um fenômeno da natureza que é transmitido para todo o mundo e que o aluno nos cobra uma explicação imediata, principalmente ao professor de Geografia. Como proceder diante deste quadro?
Muitos teóricos têm levantado o problema da quantidade de conteúdo e do fracasso do ensino que busca esgotá-lo. Nesse sentido, apontam que a sociedade contemporânea caracteriza-se pelo grande avanço em muitas áreas do conhecimento e, ao mesmo tempo, pela velocidade com que esse avanço acontece, tornando a cada dia uma série de teorias, modelos, “descobertas” científicas obsoletas, superadas.
Por outro lado, outros teóricos, estudiosos da didática, professores de diferentes matérias têm alertado para o fato de que grande parte do que se ensina na escola, nas aulas, se esquece em seguida, especialmente quando se trata de conhecimentos que pouco ou nada servem para a vida prática das pessoas.
Essas constatações não levam, ou não devem levar, a negar a importância de se veicular conteúdos no ensino, pois muitos deles têm sua importância destacada. Porém, em um contexto assim, esgotar conteúdos programáticos não pode ser a expectativa de um professor, nem pode ser um parâmetro de qualidade de um curso. Nesse contexto, é preciso objetivar o ensino pelo trabalho feito com os conteúdos e para sua possibilidade de resultar em formas de pensamento autônomo do aluno, tornando-o mais capaz, ou contribuindo para a sua capacidade de lidar com os conhecimentos que estão disponibilizados em sua vida prática, de utilizar esses conhecimentos, de produzir conhecimentos, de acompanhar seus avanços. Na Geografia isso significa voltar o ensino para o desenvolvimento do pensamento espacial, do raciocínio geográfico, propiciando, pela mediação entre o aluno, como sujeito, e os objetos do conhecimento, que são os conteúdos geográficos, a construção de ferramentas intelectuais, de conceitos geográficos, de capacidades de operar praticamente com os espaços, permitindo ao aluno sua análise, tendo em conta sua própria vida, sua experiência, seu espaço cotidiano.


http://www.ffp.uerj.br/tamoios/revistas/0602/entrevista.htm

Resenhas: Territórios alternativos

Territórios Alternativos
ROGÉRIO HAESBAERT
Editora Contexto/Eduff,2002

Há autores e textos que atravessam o tempo e as tendências com o poder do testemunho e da criatividade a um só tempo críticos, engajados e independentes. Rogério Haesbaert e seu novo livro servem de exemplo. Trata-se de uma coletânea na qual o autor, professor do Departamento de Geografia, da Universidade Federal Fluminense, onde leciona e orienta alunos nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Geografia, cobre o período de 1987 a 1998, reunindo alguns dos textos produzidos e publicados em diferentes fontes nestes quase dez anos marcados por intensas transformações na geografia em todo o mundo.

Aqui encontram-se os textos de seu posicionamento desde a (chamada) Geografia Crítica à Geografia Cultural, numa reunião bastante significativa de sua presença e produção na vida intelectual de geografia brasileira. Bem como todos os temas importantes que de uma corrente à outra os geógrafos foram chamados ao debate. E têm um certo sabor de polêmica. O que mostra um autor debatedor e atento.

São oito textos e uma entrevista, onde a modernidade e a pós-modernidade, o lugar e a rede, a regionalização e a globalização, a mudança e a permanência, a territorialização e a desterritorialização, confrontados ao tema da identidade, se aprofundam em cada texto, no estilo fluído e elegante que tornaram conhecidos e procurados os trabalhos de Rogério.

Os quatro primeiros textos mapeiam o debate da modernidade e pós-modernidade, desfilando posições e autores e seu cruzamento com o momento da Geografia. O quinto é um belo texto sobre escala na Geografia e na História da escola de Braudel, em boa hora publicado em livro por Rogério. O sexto e sétimo discutem de modo mais específico o tema do território. O oitavo trabalha onde no diálogo da identidade e a poesia, a Geografia faz cruzar razão e sensibilidade enquanto momentos e categorias. O livro fecha com a entrevista, onde uma relação mais pessoal autor-leitor se coloca. Uma análise minuciosa percorre do positivismo ao marxismo e à fenomenologia, pelos quais o autor transita habilmente, numa relação muito profícua entre a Geografia, a Filosofia e o Pensamento Social. Além disso, percorre todo o livro uma cultura erudita do pensamento geográfico que credencia e avaliza a qualidade do livro.

É de lamentar que não se possa ver na geografia brasileira ainda o cotidiano do diálogo e da polêmica a que Rogério e autores de outros tantos livros se lançam. E não são poucos. Talvez porque a geografia brasileira pouco tenha conhecido a riqueza da produção em livros e revistas que hoje vemos. Que nunca tivemos tantos periódicos, veículos de uma quantidade tão grande de ensaios, como neste momento temos no país, isto é vero. O que põe em dúvida uma hipótese de a responsabilidade da desproporcionalidade dos intercâmbios e dos debates ser do dia-a-dia esterilizante que o momento por que a universidade brasileira ultimamente passa impõe aos que a ela se dedicam. Sobrecarregados pela pilha de relatórios e reunismo que a própria crise universitária os obriga, pouco tempo restaria além da escrita e divulgação da produção, ainda assim vasta, aos acadêmicos, nada ou quase nada lhes sobrando para os intercâmbios e os debates. Um momento reduzido aos encontros acadêmicos, nem sempre adequadamente apropriados para os termos.

Oxalá a insistência e a publicação de obras de excelência, como o livro e a produção de Rogério Haesbaert, em breve prevaleçam. O livro está aí para ver/ler.
(Ruy Moreira)

Fonte: http://www.uff.br/geographia/ojs/index.php/geographia/article/view/95/92

21 de nov. de 2009

Manifesto em defesa do MST

Contra a violência do agronegócio e a criminalização das lutas sociais


As grandes redes de televisão repetiram à exaustão, há algumas semanas, imagens da ocupação realizada por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em terras que seriam de propriedade do Sucocítrico Cutrale, no interior de São Paulo. A mídia foi taxativa em classificar a derrubada de alguns pés de laranja como ato de vandalismo.

Uma informação essencial, no entanto, foi omitida: a de que a titularidade das terras da empresa é contestada pelo Incra e pela Justiça. Trata-se de uma grande área chamada Núcleo Monções, que possui cerca de 30 mil hectares. Desses 30 mil hectares, 10 mil são terras públicas reconhecidas oficialmente como devolutas e 15 mil são terras improdutivas. Ao mesmo tempo, não há nenhuma prova de que a suposta destruição de máquinas e equipamentos tenha sido obra dos sem-terra.

Na ótica dos setores dominantes, pés de laranja arrancados em protesto representam uma imagem mais chocante do que as famílias que vivem em acampamentos precários desejando produzir alimentos.

Bloquear a reforma agrária

Há um objetivo preciso nisso tudo: impedir a revisão dos índices de produtividade agrícola – cuja versão em vigor tem como base o censo agropecuário de 1975 – e viabilizar uma CPI sobre o MST. Com tal postura, o foco do debate agrário desloca-se dos responsáveis pela desigualdade e concentração para criminalizar os que lutam pelo direito do povo. A revisão dos índices evidenciaria que, apesar de todo o avanço técnico, boa parte das grandes propriedades não é tão produtiva quanto seus donos alegam e estaria, assim, disponível para a reforma agrária.

Para mascarar tal fato, está em curso um grande operativo político das classes dominantes objetivando golpear o principal movimento social brasileiro, o MST. Deste modo, prepara-se o terreno para mais uma ofensiva contra os direitos sociais da maioria da população brasileira.

O pesado operativo midiático-empresarial visa isolar e criminalizar o movimento social e enfraquecer suas bases de apoio. Sem resistências, as corporações agrícolas tentam bloquear, ainda mais severamente, a reforma agrária e impor um modelo agroexportador predatório em termos sociais e ambientais como única alternativa para a agropecuária brasileira.

Concentração fundiária

A concentração fundiária no Brasil aumentou nos últimos dez anos, conforme o Censo Agrário do IBGE. A área ocupada pelos estabelecimentos rurais maiores do que mil hectares concentra mais de 43% do espaço total, enquanto as propriedades com menos de 10 hectares ocupam menos de 2,7%. As pequenas propriedades estão definhando enquanto crescem as fronteiras agrícolas do agronegócio.

Conforme a Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2009) os conflitos agrários do primeiro semestre deste ano seguem marcando uma situação de extrema violência contra os trabalhadores rurais. Entre janeiro e julho de 2009 foram registrados 366 conflitos, que afetaram diretamente 193.174 pessoas, ocorrendo um assassinato a cada 30 conflitos no primeiro semestre de 2009. Ao todo, foram 12 assassinatos, 44 tentativas de homicídio, 22 ameaças de morte e 6 pessoas torturadas no primeiro semestre deste ano.

Não violência

A estratégia de luta do MST sempre se caracterizou pela não violência, ainda que em um ambiente de extrema agressividade por parte dos agentes do Estado e das milícias e jagunços a serviço das corporações e do latifúndio. As ocupações objetivam pressionar os governos a realizar a reforma agrária.

É preciso uma agricultura socialmente justa, ecológica, capaz de assegurar a soberania alimentar e baseada na livre cooperação de pequenos agricultores. Isso só será conquistado com movimentos sociais fortes, apoiados pela maioria da população brasileira.

Contra a criminalização das lutas sociais

Convocamos todos os movimentos e setores comprometidos com as lutas a se engajarem em um amplo movimento contra a criminalização das lutas sociais.

1 de nov. de 2009

Sumário: Geografia conceitos e temas


PARTE 1 - CONCEITOS

Espaço: um conceito-chave da Geografia

O conceito de região e sua discussão

O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento

O problema da escala

Redes: emergência e organização

PARTE 2 - TEMAS

Desterritorialização: entre as redes e os aglomerados de exclusão

Questão regional e gestão do território no Brasil

Mudança técnica e espaço: uma proposta de investigação

A geopolítica na virada do milênio: logística e desenvolvimento sustentável

Origens do pensamento geográfico no Brasil: meio tropical, espaços vazios e a idéia de ordem (1870-1930)

20 de out. de 2009

Dicas: Geografia agrária

Dica de dois sites para aqueles interessados no estudo sobre a questão agrária brasileira:


O primeiro é o site do NERA - Nucleo de Estudos,Pesquisas e projetos de Reforma Agrária. O Núcleo faz parte do curso de Geografia da UNESP e tem como um dos seus coordenadores o professor Bernando Mançano. O site traz uma riqueza de material bibliográfico e cartográfico. Vale a visita.

http://www4.fct.unesp.br/nera/atlas/questao_agraria.htm

O segundo, também parte do NERA, é o Atlas da questão agrária brasileira:
http://www4.fct.unesp.br/nera/atlas/questao_agraria.htm

18 de out. de 2009

Dilemas urbanos: novas abordagens sobre a cidade

Livro organizado pela professora Ana Fani da USP.

SUMÁRIO

Apresentação
Áreas metropolitanas Espaços colonizados
Rosa Tello Robira
Da cidade industrial à cidade dos consumidores Reflexões teóricas para debater
Carles Carreras
A reprodução da cidade como “negócio”
Ana Fani Alessandri Carlos.
A geografia e a produção do espaço da metrópole Entre o público e o privado
Amélia Luisa Damiani
Economia política do espaço A reestruturação da Bacia do Alto Tietê
Odette Carvalho de Lima Seabra .
Cidades ou sociedades sustentáveis?
Wagner Costa Ribeiro
Perspectivas culturais para o estudo da cidade
Núria Benach
Funções culturais da metrópole Metodologia sobre a requalificação urbana do Centro de São Paulo
Eduardo Yázigi
A gentrification Conceito e método
Sergi Martinez i Rigol
Gentrification ou moradia social Estudo comparativo do consumo no Centro Antigo de São Paulo
Amália Inés Geraiges de Lemos
Revitalização do Centro Antigo. O espaço da memória de São Paulo
Francisco Capuano Scarlato.
São Paulo Uma cidade global
Glória da Anunciação Alves .
Os sistemas de informação geográfica, um instrumento para o estudo das transformações urbanas?
Santi Vals..

24 de set. de 2009

Sugestão de bibliografia: Pós-modernidade


Sobre pós-modernidade

ANDERSON, Perry. As Origens da Pós-Modernidade.
BAUMAN, Z. Modernidade líquida
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas
BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo.
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido.
BAUMAHARVEY, D. A condição pós-moderna.
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio.
JAMENSON, Frederic. Espaço e imagem
WOOD, Ellen et FOSTER, John. (Org.). Em Defesa da História - Marxismo e Pós-Modernismo

Entrevista: David Harvey


David Harvey é geógrafo. Atualmente professor em Harvard. A entrevista abaixo foi dada a revista Carta Maior em março de 2009

IHU On-Line - Quais são para o senhor, as propostas da esquerda frente à crise internacional?

David Harvey - O pensamento de esquerda não convergiu para algum consenso de propostas para enfrentar as dificuldades presentes, e pode levar algum tempo até que tal consenso surja. Estamos no início de uma crise de legitimação no mundo inteiro, em que um número cada vez maior de pessoas tem de questionar se o capitalismo é uma forma viável de satisfazer as necessidades humanas. Isto, por sua vez, levanta a questão de alternativas. Atualmente, há pessoas que procuram reformar o capitalismo de modo a obter maior igualdade e sustentabilidade ambiental versus aquelas que defendem um caminho mais revolucionário que procuraria derrubar diretamente o capitalismo.

Entre estas últimas, há uma cisma profunda entre as pessoas que consideram vital tomar o poder estatal e revolucioná-lo a caminho do socialismo e aquelas que procuram construir sistemas sociais e político-econômicos fora do capitalismo, do Estado capitalista e de suas instituições dominantes. O que é possível depende muito das circunstâncias políticas e econômicas. Nos Estados Unidos, sou a favor de um caminho de reformas que, gradativamente, leve o sistema na direção de soluções mais revolucionárias e não consigo ver outra forma de fazer isso exceto que as forças progressistas tomem o poder estatal e usem esse poder para desmantelar as estruturas de poder existentes.

IHU On-Line - Como a história da geografia mundial pode nos ajudar a compreender os rumos do capitalismo e a crise atual?


David Harvey - É muito importante entender o desenvolvimento geográfico desigual do capitalismo e que isso produz um terreno geográfico desigual de possíveis movimentos oposicionistas. Nos Estados Unidos, as condições objetivas e subjetivas para se dedicar à luta anticapitalista são radicalmente diferentes das condições existentes na China ou no Brasil, e um movimento global rumo ao socialismo tem de reconhecer essas diferenças e trabalhar com elas para tentar alcançar seus objetivos.

IHU On-Line - Considerando as questões geográficas e a crise do capital, que economia o senhor vislumbra para o futuro? O fato de o leste asiático poder se transformar numa potência é sinal de alguma mudança estrutural na economia?

David Harvey - Já faz alguns anos que os Estados Unidos vêm perdendo sua posição hegemônica dentro da economia global. Eles perderam sua dominância na manufatura nas décadas de 70 e 80, e agora estão perdendo sua dominância nas finanças, bem como sua influência política e autoridade moral (que estão sendo parcialmente recuperadas agora pela eleição de Obama). A única coisa que restou é o poder militar, e ele é limitado em terra, como vemos no Iraque e no Afeganistão.
O mundo está se tornando muito mais multipolar com a ascensão da China e do Leste da Ásia como centro importante de poder, com a formação da União Europeia. As propostas de formar um banco latino-americano sugerem que essa região também poderá se tornar um poder regional mais consolidado.

IHU On-Line - É possível resgatar o capitalismo dos capitalistas e “de sua falsária ideologia neoliberal”? Em que medida isso pode ser feito pela esquerda?

David Harvey - O neoliberalismo não acabou. Formas secretas dele ainda estão profundamente arraigadas em instituições e estruturas financeiras, e, se o neoliberalismo tem a ver com a consolidação do poder de classe, é bem possível que vejamos uma consolidação ulterior disso até chegarmos a ficar sem as legitimações ideológicas da ciência econômica do livre mercado. É a esta consolidação do poder de classe capitalista que a esquerda tem de se opor resolutamente, até nas ruas, se necessário. Esta é grande batalha que tem de ser travada por todas as facções da esquerda.

IHU On-Line - Economistas de todo o mundo recorreram às teorias de Marx e Keynes para pensar em alternativas à crise. Considerando o atual momento, a esquerda pode fazer mais do que isso, ou seja, propor novas alternativas ao invés de ficar atrelada apenas a essas teorias de salvamento da economia?

David Harvey - Esta é uma questão controvertida, de modo que vou dar minha própria opinião. Sou a favor de se estabilizar o capitalismo através de medidas keynesianas que se transformem em possibilidades marxistas. Sou favorável a isso porque um colapso ulterior do capitalismo sem nenhuma alternativa pronta para tomar seu lugar causará miséria e sofrimento incalculável para a massa da população, incluindo as pessoas que estão no setor informal, enquanto que a classe capitalista escapará relativamente incólume. A classe capitalista consolidará seu poder numa crise e tentará se proteger pela promoção de formas fascistas. A única maneira que consigo conceber de impedir isso é estabilizar o sistema a fim de criar uma ordem política mais forte para a construção da alternativa. Mas sei que muitas pessoas discordarão de mim, e não estou totalmente certo de ter razão.

IHU On-Line - Para o senhor, a esquerda de hoje pretende desaparecer com o capitalismo ou reformulá-lo?

David Harvey - O projeto de longo prazo é criar a alternativa ao capitalismo, e o longo prazo não pode ser muito longo porque esta crise nos mostra que o capitalismo como sistema histórico mundial está próximo de seu fim e suas possibilidades estão perto de serem exauridas. Portanto, temos de passar de modo rápido, mas deliberado, pela reforma para a transformação revolucionária.

IHU On-Line - Diante da crise, muitos especialistas tratam da importância de regular o mercado. Nesse sentido, que função deve ser desempenhada pelo Estado? Que estratégia é primordial nesse momento?

David Harvey - Nossos problemas atuais não serão resolvidos pela regulamentação, absolutamente. Essa não é a questão. O Estado tem um papel crucial a desempenhar no lançamento de um programa de estabilização para o capitalismo, mas, por definição, esse programa de estabilização tem de empoderar os trabalhadores, de modo que, quanto mais empoderados estiverem, tanto mais o Estado se tornará um instrumento em suas mãos que pode ser usado para delinear a transição para o socialismo.

IHU On-Line – O senhor concorda com as medidas adotadas pelos governos mundiais, que estão disponibilizando dinheiro para salvar instituições falidas? Por que não há uma redistribuição de recursos a favor dos setores mais necessitados da sociedade? Quais serão as consequências disso a longo prazo?

David Harvey - A regra áurea neoliberal, desde a década de 70, tem sido salvar as instituições financeiras às expensas do povo, e é exatamente isto que estamos vendo agora. É por isso que eu digo que o neoliberalismo não acabou. Essa preferência por salvar as instituições financeiras e, ao mesmo tempo, ferrar o povo continuará, a menos que haja uma oposição maciça a ela. Se isso continuar, talvez saiamos da crise atual de tal forma que muitos de nós terão perdido seu ganha-pão e seus ativos, e ainda por cima seremos lançados de novo numa crise mais profunda e mais complicada daqui a cinco anos. A frequência e a profundidade das crises financeiras aumentaram nos últimos 30 anos de dominação neoliberal, e isso não deixará de ser assim até que desmantelemos a versão neoliberal do capitalismo e, em última análise, o próprio capitalismo. Mas temos de fazer isso dando um passo de cada vez.